HISTÓRICO DA PENA DE MORTE
Arnóbio Felinto Júnior
Neste trabalho traça-se um breve histórico da pena de morte, com a
intenção de verificar como foi o tema tratado no tempo e no espaço,
desde o Egito Antigo até os dias de hoje. O estudo é relevante, tendo em
vista que somente se pode entender o presente com o respaldo do
passado.
1 ANTECEDENTES REMOTOS
No Egito Antigo, a organização social era baseada na hierarquia,
destacando-se a figura do Faraó. A pena de morte era aplicada às pessoas
que ofendessem a divindade e a pessoa do Faraó.
Na Babilônia, em momento posterior, existiram duas fases de suma
importância: a da vigência do Código de Hammurabi, que estampou a
punição daqueles que cometessem crimes intencionalmente e a da
Legislação de Manu, pela qual crime se punia o furto. Por seu turno, os
Hebreus atribuíam tal pena aos crimes contra os costumes e a religião,
sendo a forma de execução mais comum o lapidamento.
A título de ilustração seguem as referidas legislações.
O Código de Hammurabi, através da Lei n. 1 estabelecia: “Se alguém
acusa um outro, lhe imputa um sortilégio, mas não pode dar a prova
disso, aquele que acusou, deverá ser morto.” Pela Lei n. 3: “Se alguém
em um processo se apresenta como testemunha de acusação e, não prova o
que disse, se o processo importa perda de vida, ele deverá ser morto.”
Como se pode perceber, era muito perigoso na Babilônia jurar falso em
frente de um juiz. Preceitua a Lei n. 6: “Se alguém furta bens do Deus
ou da Corte deverá ser morto; e mais quem recebeu dele a coisa furtada
também deverá ser morto.” Na Lei n. 11 se lê: “Se o proprietário do
objeto perdido não apresenta um testemunho que o reconheça, ele é um
malvado e caluniou; ele morrerá.” Mais adiante, a Lei n. 129 estabelece:
“Se a esposa de alguém é encontrada em contato sexual com um outro, se
deverá amarrá-los e lançá-los nágua, salvo se o marido perdoar à sua
mulher e o rei ao seu escravo.” Em seguida, na Lei n. 130: “Se alguém
viola a mulher que ainda não conheceu homem e vive na casa paterna e tem
contato com ela e é surpreendido, este homem deverá ser morto, a mulher
irá livre.”
[1] Os estupradores, portanto, se arriscavam a perder a vida.
O Código de Manu, por sua vez, estabelecia na Lei n. 320: “Por haver
tirado de homens de boa família, sobretudo mulheres e jóias de grande
preço, como diamantes, o ladrão merece a pena capital.”
[2]
Na Grécia, a pena de morte atingia, além do culpado, seu cônjuge e
filhos. Essa aplicação destinava-se aos crimes contra o Estado e a
religião. A execução realizava-se através do afogamento, fogueira,
apedrejamento, entre outras formas.
Era comum que, ao aplicarem a pena de morte, os soberanos do Oriente
dessem a impressão de agir como criminosos. Assurbanipal, rei da
Assíria, que governou de 668 a 626 antes de Cristo, assim descreveu a
execução de revoltosos:
Ergui um muro diante das grandes portas da cidade. Mandei esfolar os
chefes da revolta e cobrir o muro com as suas peles. Uns foram
enterrados vivos na construção, outros foram crucificados ou empalados
ao longo do muro. De vários mandei arrancar a pele na minha presença e
revestir este muro com ela. Mandei dispor as cabeças em forma de coroas,
e os cadáveres trespassados em forma de grinaldas.
[3]
No período Romano, aplicava-se a pena capital aos crimes de ordem
pública e privada. Na fase de vigência da Lei das XII Tábuas, também
chamada simplesmente Lex, ou ainda Legis XII Tabularum ou Lex Decenviralis,
este assunto era tratado como coisa sacral e de ordem legal. Puniam-se
os delitos praticados à noite, o pastor que invadia terreno alheio, o
incendiário ou ainda o homicida comum e aquele que assassinava pai e
mãe. A fogueira era pena que já nas XII Tábuas era aplicada ao
incendiário que, depois de flagelado, era atado ou cravado a um poste ao
qual se punha fogo com um montão de lenha colocado ao redor. Aos
parricidas, se negava sepultamento. O condenado previamente açoitado
tinha a sua cabeça coberta com uma pele de lobo; depois de calçado com
sapatos de madeira era encerrado num saco de couro de vaca, juntamente
com uma serpente e outros animais, e lançado às águas.
Seguem algumas leis da Tábua Sétima, Dos Delitos:
3. Aquele que fez encantamentos contra a colheita de outrem,
4. ou a colheu furtivamente à noite antes de amadurecer ou a cortou de madura, será sacrificado a Ceres;
6 Aquele que fizer pastar o seu rebanho em terreno alheio,
7 e o que intencionalmente incendiar uma casa ou um monte de trigo
perto de uma casa, seja fustigado com varas e em seguida lançado ao
fogo.;
17 Se alguém matar um homem livre e; empregar feitiçaria e veneno, que seja sacrificado com o último suplício;
18 Se alguém matar o pai ou a mãe, que se lhe envolva a cabeça e seja colocado em um saco costurado e lançado ao rio.
[4]
Na fase imperial, devido à influência Cristã, a pena de morte foi
decaindo e permitia-se a composição em seu lugar. Entre os Germanos,
esse tipo de punição vigorava entre os escravos. Existia grande
tendência à composição com multas pecuniárias. No Direito Canônico,
predominou a proibição do seu uso devido à influência cristã, salvo
alguns defensores. No inicio da Idade Média, a pena de morte foi
utilizada, a princípio, devido ao aumento da criminalidade nas
proximidades das cidades, onde constantemente ocorriam roubos de cargas.
2 INQUISIÇÃO
Com o início da Inquisição em 1232, lançaram-se editos de perseguição
aos hereges na Europa. Chamada de Santo Ofício foi instituída como
tribunal permanente da Igreja para investigar e combater heresias. A
prática de queimar hereges em autos-da-fé foi introduzida nos últimos
anos do século XII.
A esta época as punições aplicadas eram diversas: trabalho forçado,
prisão perpétua, destruir a casa onde morava o suposto bruxo e mandá-lo
para o confinamento em aldeias distantes. Também eram punidos os
descendentes dos acusados de heresia, que eram proibidos de entrar em
ordens religiosas, não tinham qualquer dignidade pública e não podiam
exercer nenhuma função na sociedade, como por exemplo: médicos, tutores
de jovens, cobradores de impostos, escrivães, advogados, farmacêuticos,
entre outras. Não podiam ainda usar ouro, prata, seda, pedras preciosas,
levar armas ou andar a cavalo.
A pena mais grave era o confisco de bens, que mantinha a Inquisição. A
morte era reservada àqueles que se declaravam inocentes da acusação de
heresia ou aos que se negavam confessar. Se um réu, antes da aplicação
da pena de morte, pedisse para morrer nas leis de Cristo, acabava
garroteado e depois queimado, ou então, era queimado vivo.
O referido Tribunal do Santo Ofício foi instaurado em 1236, pelo papa
Gregório IX, que temendo as ambições político-religiosas do imperador
Frederico II, tomou para si a responsabilidade de perseguir os hereges
que começavam a incomodar o alicerce da Igreja Católica, bem como a
estrutura dos estados monárquicos de então, que tinham como um dos
pontos de unificação de seu território a religião predominante da época.
Antes de se instaurar o Tribunal do Santo Ofício, propriamente dito, no
início da Idade Média, a Igreja estruturou a sua justiça, limitando-se a
uma justiça disciplinar. O seu procedimento era distinto da justiça
comum da época, pois sua investigação era secreta e arrancar a confissão
do réu constituía-se no âmago da questão. Esta justiça somente era
aplicada ao clero. Entretanto, com o IV Concílio de Latrão, de 1216,
através do papa Inocêncio III, firmou-se o
metodo inquisitio.
[5]
Nasce, então, no seio da Igreja católica, o Sistema Processual
Inquisitório, onde a autoridade responsável dispõe de poderes para, por
sua iniciativa, abrir o processo, colher as provas que julgar
necessárias e proceder secretamente no interesse em obter a confissão do
réu. É esse sistema processual inquisitório que lançará as diretrizes e
norteará todo o funcionamento da Inquisição, através de seus atos,
mandos e desmandos em nome de Deus.
2.1 O Tribunal de Deus
Para se instaurar um processo inquisitorial bastava uma denúncia ou
uma acusação ao Santo Ofício, pois não adiantava fugir: o Santo Ofício
via tudo, se infiltrava por toda parte, até no recesso dos lares.
Obrigava os fiéis a se tornarem espiões e delatores e dessa maneira
montava uma densa rede de informantes ocultos. Graças a isso, manteve
perfeito controle social, exigiu comportamentos, impediu o livre
arbítrio, sufocou dissidências.
Esse Tribunal tinha por base o Manual dos Inquisidores, escrito em
1376 por Nicolau Eymerich e Francisco de La Peña. O Manual continha
todas as normas, leis e toda sorte de punição que se aplicava aos
hereges. Estes eram o alvo principal do Santo Ofício e o Manual os
classificava e definia como: os excomungados; os simoníacos
(comercialização de bens da igreja); quem se opusesse à igreja de Roma e
contestasse a autoridade que ela recebeu de Deus; quem cometesse erros
na interpretação das Sagradas Escrituras; quem criasse uma nova seita ou
aderisse a uma seita já existente; quem não aceitasse a doutrina romana
no que se refere aos sacramentos; quem tivesse opinião diferente da
igreja de Roma sobre um ou vários artigos de fé; quem duvidasse da fé
cristã.
Instituído sob o caráter religioso, este Tribunal regulava e
controlava toda vida cotidiana dos pensamentos dos cidadãos, assumindo
uma importância extraordinária, tanto que não raras vezes ele julgou
processos comuns que não diziam respeito à ordem eclesiástica, acusando
os réus de hereges e submetendo-os aos rigores de suas normas.
Para se instaurar um processo inquisitorial bastava uma acusação, que
devia ser registrada, ou uma denúncia anônima - que devia ser precedida
de uma caridosa exortação; ou, ainda, por investigação, pela qual se
averiguava as informações que chegavam ao Tribunal. Se o indivíduo se
apresentasse como acusador, este deveria ser lembrado de que seria
inscrito na Lei de Talião. Se, mesmo informado, o indivíduo se
mantivesse como acusador, desenrolar-se-ia o processo a partir da
acusação. Entretanto, se após receber a informação, o delator não
quisesse mais assumir o papel do acusador e declarasse que queria apenas
ser o denunciante, com sua identidade ocultada - o que ocorria com mais
frequência - procedia-se ao processo pela denúncia. Havia, ainda, um
terceiro tipo de instauração de processo, que se constituía no processo
pela investigação, pelo qual o Tribunal deveria averiguar os boatos que
chegavam aos seus ouvidos.
O processo preferido do Santo Ofício era o processo por delação, já
que pelo processo de acusação, se o réu fosse inocentado, o tribunal
teria de aplicar a Lei de Talião, punindo-se o acusador dificultando o
surgimento de novos delatores, assim contribuindo para a impunidade dos
crimes, em prejuízo do Estado.
Dando prosseguimento ao processo são inquiridas e interrogadas as
testemunhas, no máximo duas, indo-se o interrogatório do acusado, até o
inquisidor conseguir sua confissão, o que se constitui na pretensão
máxima da inquisição, pois diante do tribunal da inquisição, basta a
confissão do réu para condená-lo.
Embora se tenha a impressão de que no Tribunal do Santo Ofício só
existia o lado do acusador, ou melhor, era o Estado contra um indivíduo,
sem o direito de defesa, e de nenhum representante para defendê-lo, a
verdade é que o Tribunal facultava ao réu formalmente, tal direito, por
meio de um advogado, indicado pelo próprio Tribunal, devendo ser
honesto, com experiência em direito civil e canônico, e bastante
fervoroso. Na prática o advogado de defesa era um elemento decorativo no
processo, pois quem o escolhia era o Tribunal, e seu compromisso não
era com a defesa do Réu, mas com a obtenção da confissão e
arrependimento deste.
Sobre o advogado dita o Manual dos Inquisidores:
[...] se o réu confessar, não há necessidade de um advogado para
defendê-lo. Se não quiser confessar, receberá ordens de fazê-lo por três
vezes. Depois se continuar negando, o inquisidor lhe atribuirá,
automaticamente, um advogado juramentado no seu tribunal. O réu
comunicar-se-á com ele na presença do inquisidor. Quanto ao advogado,
prestará juramento - e embora já seja juramentado - ao inquisidor de
defender bem o réu e guardar segredo sobre tudo o que vir e ouvir. O
papel do advogado é fazer o réu confessar logo e se arrepender, além de
pedir a pena para o crime cometido.
[6]
Deste modo, o réu, não tinha defesa e muito menos um advogado de
defesa, pois este se postava do lado da inquisição e não do acusado. Se
neste em quase todos os processos inquisitoriais não se a designar um
advogado para o réu confessar, pois a confissão era arrancada deste nos
interrogatórios, através da tortura.
O uso da tortura para se obter uma confissão foi permitido pelo papa
Inocêncio IV em 1252, e “[...] era aplicada sempre que se suspeitasse de
uma confissão ou quando era incongruente. Um testemunho era suficiente
para justificar o envio para a câmara de tormento. Quanto mais débil a
evidência do crime, mais severa era a tortura.
[7]
Segundo o próprio Manual dos Inquisidores, a tortura deveria ser
moderada, pois o papel do inquisidor não era o de carrasco. Todavia, com
o passar do tempo a violência aplicada sob os auspícios do tribunal,
tornou-se cada vez mais severa.
Terminada a sessão de tortura, seguia-se o julgamento do réu, a
última etapa do processo, que antecedia o auto-de-fé. Os que eram
condenados a penas leves - como cárcere e hábito penitencial perpétuo,
bem como a flagelação - caminhavam com uma vela nas mãos. Na frente do
cortejo seguiam os condenados à morte, entregues à justiça civil para
serem queimados vivos. Salientamos aqui um aspecto interessante. Por ser
um Tribunal eclesiástico o Santo Ofício não podia executar seus
condenados, ou seja, aos olhos de Deus não era a Igreja quem executava,
pois a esta cabia apenas julgar. A decisão de validar o julgamento cabia
à justiça dos homens; e estes teriam acertos com o Todo Poderoso se não
fizessem valer a determinação do tribunal inquisitorial.
Os condenados à morte tinham seus bens confiscados, pois o Tribunal
necessitava manter-se e financiar gastos com os presos, como as tochas
para acender as fogueiras e com o espetáculo promovido no auto-de-fé.
Havia dois tipos de autos-de-fé: os públicos e os privados. Estes se
destinavam aos casos menos graves ou especiais (julgamentos de pessoas
pertencentes à alta nobreza); aqueles eram enormes festas populares.
Dispendiosos, os autos públicos realizavam-se anualmente.
Construíam-se estrados, utilizava-se mobiliária, decorações. Tinham
longa duração, ou seja, duravam o dia todo e, às vezes, dependendo do
número de réus estendiam-se até altas horas da noite, chegando mesmo até
o dia seguinte. Com o passar do tempo, o caráter festivo e sua
ostentação aumentaram, e eram convidados reis, infantes, toda a Corte
para assistirem de camarote à execução e humilhação dos transgressores
da sociedade. Durante essa festa, os acusados ouviam suas sentenças e os
condenados à morte, depois da cerimônia, eram conduzidos ao queimador.
Esta festividade iniciava-se com uma procissão dos réus, seguida de uma
missa, na qual o teor do sermão era a essência de toda a cerimônia. Das
aldeias mais distantes chegavam curiosos a todo momento, apinhando-se
uns sobre os outros para ver melhor as roupas, toaletes, cabelos das
condessas, das princesas, das nobres damas da corte. Depois de dadas as
sentenças, o povo corria para o queimadeira, para ver como se salvavam
as almas.
3 A REVOLUÇÃO FRANCESA
Revolução Francesa é o nome dado ao conjunto de acontecimentos que,
entre 5 de maio de 1789 e 9 de novembro de 1799, alteraram o quadro
político e social da França. Em causa estavam o Antigo Regime (
Ancien Régime)
e a autoridade do clero e da nobreza. Foi influenciada pelos ideais do
Iluminismo e da Independência Americana (1776). Está entre as maiores
revoluções da história da humanidade. Esta época é considerada como o
acontecimento que deu início à Idade Contemporânea. Aboliu a servidão e
os direitos feudais e proclamou os princípios universais de "Liberdade,
Igualdade e Fraternidade" (Liberté, Egalité, Fraternité), frase de
autoria de Jean-Jacques Rousseau.
[8]
O processo de Maria Antonieta, rainha da França deposta pela
revolução, ao contrário de um processo inquisitorial precisava de provas
para ser iniciado, ou seja, não bastava mais uma denúncia ou uma
acusação; necessitava-se de algo concreto, material, um documento que a
incriminasse.
Durante sua vida, Maria Antonieta queimou todas as cartas, decretos,
bilhetes e toda sorte de documento que a comprometesse às vésperas da
revolução. Portanto, como nobre deposta ao Tribunal só cabia o direito
de mantê-la sob cárcere. A princípio foi encarcerada no Palácio dos
Templários - O Templo, como era conhecido, junto com Luís XVI, seu
marido, seus filhos e sua cunhada.
Com a morte de seu marido, guilhotinado sob a acusação de traidor da
França, sua vida foi dedicar-se a seu filho Delfim. Sua alegria naquele
cárcere era viver para este filho que ela amava e dedicava toda a sua
alma. Entretanto, sua vontade de viver foi-se minando a partir do
momento que o Tribunal decidiu, por falta de provas para incriminá-la,
tirar seu filho de sua custódia. A partir de então essa mãe ficou
desolada. Durante o curto período que permaneceu no Templo, consolava-se
vendo o filho, secretamente, passear pelo jardim do castelo. Mas a
revolução não a poupou, transferindo-a para Conciergerie, que “era o
cárcere escolhido para os mais perigosos criminosos políticos. A
inscrição no registro de entrada correspondia, afinal a uma certidão de
óbito.”
[9]
Todavia, diferente do que se imagina a convenção, não se pretendia
concluir logo o processo de Maria Antonieta, mas sim mantê-la como refém
para atingir a Áustria. Entretanto, a sua terra natal não estava nem um
pouco interessada em sua sorte. E assim o processo se arrastava, pois o
desinteresse da Áustria, bem como a falta de provas que incriminasse
Maria Antonieta fazia com que o processo se demorasse cada vez mais.
Diante disso dizia o comitê de salvação pública à convenção: “[...] por
que razão se faz tanta cerimônia para julgar o tigre austríaco, e se
procuram provas para condená-la, quando para fazer-lhe justiça, se devia
triturá-la como se faz à carne dos pastéis, para pagar todo sangue que
ela fez correr?”
[10]
Pelo que se vê a violência que iria nortear todo o período do Terror
tem a sua origem na indignação do comitê diante da demora de se julgar
uma traidora da Revolução.
Embora encarcerada em uma prisão de segurança máxima, Maria Antonieta
conseguiu conquistar a simpatia de seus carcereiros, que tudo faziam
para agradá-la e tornar menos terrível aqueles dias de extrema solidão.
Diante da situação desesperadora da rainha eis que surge uma esperança,
Rougeville, amigo de Maria Antonieta, tentou tirá-la do cárcere,
livrando-a da prisão, mas “[...] a comuna e o comitê de salvação pública
tinham já conseguido saber o nome de Rougeville e já a polícia andava
procurando por toda Paris o homem que desejava salvar a rainha, mas,
que, em vez disso, na realidade, lhe tinha apressado o fim.”
[11]
O que faltava para dar início ao seu processo, aconteceu. A partir de
agora era questão de agilidade na busca por provas que lhe incriminasse,
pois com a tentativa de fuga Maria Antonieta havia assinado sua
sentença de morte.
Depois da tentativa frustrada de fuga, Maria Antonieta foi
transferida para o extremo isolamento. Ninguém mais podia visitá-la, nem
vê-la. Tinham-na submetido ao maior grau de isolamento, não lhe sendo
dado nem mesmo o direito a ver a luz do sol. Quando, finalmente, foi
chamada a comparecer ante o tribunal “[...] era uma mulher velha, de
cabelos brancos, que saía de uma longa noite para tornar a ver a
claridade do céu, coisa de que já se tinha esquecido.”
[12]
Instaurado o Terror o Comitê não titubeou. Percebendo Maria Antonieta
ainda no cárcere sem que lhe tivesse feito a devida justiça, decretou:
Uma mulher, vergonha da humanidade e do sexo, a viúva Capeto, deve
expiar finalmente os seus crimes no patíbulo. Já se publica por toda a
parte que foi novamente transferida para o templo, que foi julgada e
absolvida pelo tribunal revolucionário, como se uma mulher que fez
derramar o sangue de tantos milhares de franceses pudesse vir a ser
absolvida por um júri francês! Peço que o Tribunal Revolucionário se
pronuncie esta semana em relação à sua sorte!
[13]
4 APÓS A REVOLUÇÃO FRANCESA
Um relato posterior à Revolução Francesa demonstra a preocupação da
violência cometida nas penas capitais através do livro de Victor Hugo, O
Último Dia de um Condenado à Morte. O prefácio, de 15 de março de 1832,
mostra as práticas referentes a guilhotinamentos e a indignação do
autor que defende a abolição da pena de morte, discutida até hoje.
Victor Hugo buscou as idéias para o livro na própria Praça da Grève,
onde eram realizadas as execuções dos criminosos. Ouvindo o grito de uma
sentença de morte e vendo a movimentação do povo, sedento de sangue, o
autor presencia o ritual de preparo do condenado (cortar o cabelo,
amarrar seu corpo). O sangue do condenado mancha a lâmina da guilhotina,
levando-o a sentir-se na obrigação de contar tudo aquilo para a
sociedade que estava insensível fazendo negócios, em meio à cena
monstruosa.
No livro, o autor expressa sua indignação contra a pena de morte
exemplificando um guilhotinamento que ocorreu no dia 12 de setembro de
1831, em Albi. O executado era Pierre Hébrard e esta execução foi
registrada na Gazettte des Tribunaux, jornal que serviu de fonte de
pesquisa para Victor Hugo retirar os detalhes que enriqueceram o trecho
do livro em que conta esta execução.
Segue a descrição:
[...] lá pelo fim de setembro, foram buscar o homem na prisão onde
estava tranquilamente jogando cartas, notificam-no que ele tem que
morrer dentro de duas horas, com o que ele começa tremer da cabeça aos
pés, pois, depois de seis meses no mais completo esquecimento, já não
contava mais com a morte; raspam-no, tosam-no, amarram-no, confessam-no;
após o que jogam-no num carrinho de mão entre quatro gendarmes e,
passando pela multidão, levam-no ao lugar da execução. Até aqui, tudo
muito simples. É assim que acontece. Chegando no cadafalso, o carrasco
toma-o do padre, leva-o, amarra-o no básculo, l’enfourne , aqui estou
usando a gíria, e solta a lâmina. O pesado triângulo de ferro
desprende-se com dificuldade, cai aos solavancos entre os trilhos, e
aqui começa o horrível, corta o homem sem matá-lo. O homem dá um grito
medonho. Desconcertado o carrasco puxa a lâmina e solta-a novamente. A
lâmina entalha o pescoço do paciente pela segunda vez mas não o separa
do corpo. O paciente dá urros, a multidão também. O carrasco torna a
levantar a lâmina, esperando sair-se melhor na terceira vez. Nada. O
terceiro golpe faz jorrar um terceiro rio de sangue do pescoço do
condenado, mas não trincha a cabeça. Para encurtar, a lâmina subiu e
desceu cinco vezes, o condenado soltou urros sob o golpe e sacudiu a
cabeça gritando, pedindo perdão! O povo indignado armou-se de pedras e
pôs-se, na sua justiça, a apedrejar o miserável carrasco. O carrasco
foge por baixo da guilhotina, lá agacha-se atrás dos cavalos dos
gendarmes. Mas a história ainda não acabou. O suplicado, vendo-se
sozinho no cadafalso, tinha se levantado da tábua e, em pé, pavoroso, o
sangue escorrendo pelo corpo, segurando a cabeça parcialmente cortada
que caía no seu ombro, pedia com gritos fracos que viesse soltá-lo. A
multidão tomada pela piedade, estava a ponto de forçar os gendarmes e
prestar ajuda ao coitado a quem tinham aplicado cinco vezes a pena de
morte. É neste momento que um ajudante do carrasco, um jovem de vinte
anos, sobe no cadafalso, pede para o paciente virar-se para que ele
possa soltá-lo e, aproveitando-se da posição do moribundo que estava se
entregando a ele sem desconfiar, pula nos ombros dele e começa a cortar o
que restava de pescoço com não sei que faca de açougueiro. Isto
aconteceu. Isto foi visto. Sim.
[14]
Pelo que foi aqui exposto, percebe-se que os direitos dos homens eram
bem pouco igualitários. Não se pode dizer que a guilhotina amenizou a
violência, nem se pode negar o alto preço que a humanidade pagou, pois o
que pretendia Dr. Guillotin ao amenizar o sofrimento do homem foi
comprovado não ser tão eficiente. As discussões sobre os direitos dos
homens e da pena de morte comprovam que a guilhotina não condenava só um
indivíduo à morte, ao contrário, como todas as penas de morte o fazem,
até hoje, condenam a família inteira e, por muitas vezes, castigando
inocentes.
Embora os processos apresentados, até o momento, sejam de épocas e de
contextos sociais diferentes, há aspectos e pontos em comum, bem como
traços totalmente opostos.
O primeiro ponto que chama a atenção é a questão da instauração do
processo. Enquanto no tribunal inquisitorial uma denúncia abre um
processo; no tribunal revolucionário, o caráter é mais democrático, pois
este necessitava de provas concretas para ser instaurado, bem como de
testemunhas. Basta lembrar que as testemunhas são usadas no tribunal
inquisitorial para acusar e complicar cada vez mais o réu perante o
Santo Ofício, o que não ocorre no tribunal revolucionário. A defesa do
réu também é um aspecto que se evidencia. Enquanto no Tribunal de Deus o
advogado de defesa figura como algo que atrapalha e provoca lentidão no
processo, exercendo sua função principal de fazer o réu confessar, no
Tribunal Revolucionário não existe a pretensão máxima de se obter a
confissão e o advogado de defesa é colocado como um elemento que denota
democracia.
Entretanto, o que se pretende ressaltar é o fator violência, presente
em ambos os Tribunais. No Tribunal do Santo Ofício apresenta-se através
da tortura física, já no Tribunal Revolucionário a violência aparece
através da tortura psicológica.
Segundo o que propõe Edwards Peters, a Revolução Francesa bem como o
período correspondente ao Terror, não deixaram qualquer registro que
mencionasse qualquer violência cometida sob tortura, pois, segundo o
autor: “[...] nem a própria revolução inicial nem o terror deixam
qualquer registro da tortura.”
[15]
Particularmente, discorda-se deta afirmação, pois não seria uma espécie
de tortura psicológica o que fizeram à Maria Antonieta, tirando-lhe o
filho que ela mais amava, de sua custódia? E depois, mais tarde, quando
isolaram-na em cela pequena, estreita e escura, sem a luz do sol? E as
doenças que acometeram Maria Antonieta, devido a este isolamento, no
final de sua existência, como hemorragias e cegueira? Essas indagações
não são mencionadas quando se fala em Terror na Revolução Francesa, pois
a própria guilhotina, instrumento tão usado neste período, foi criada
justamente para amenizar o sofrimento das pessoas que seriam submetidas à
morte.
A última questão é o caráter festivo com o qual essas atrocidades são
encaradas pelo povo. No Tribunal de Deus, vê-se a ansiedade do povo
pelos autos-de-fé, realizados anualmente e com um caráter de grande
festividade, pois “[...] o povo levava quitutes como para um
piquenique.”
[16]
No que diz respeito ao Terror Revolucionário encontra-se descrição do
povo aguardando a pessoa a ser guilhotinada como se aguarda um grande
ator para encenar um espetáculo deslumbrante, no qual o final é trágico.
Mas o povo assiste, aplaude e retorna no dia seguinte para assistir de
camarote o espetáculo, que deixa registrado na história a cor púrpura e a
violência cometida em nome dos ideais de igualdade.
5 DO SÉCULO XVII AO SÉCULO XIX
A festa da punição extinguiu-se gradativamente no fim do século XVII.
A execução pública passou a ser vista como uma fornalha, acendendo
fervorosamente a violência. A morte foi sendo reduzida a acontecimentos
instantâneos. A punição foi deixando de ser uma cena, e tudo que
implicasse em espetáculo tinha um cunho negativo. Já não se admitiam
aqueles processos longos, em que a morte calcava-se por uma série de
movimentos sucessivos. Foucaut escreve:
Enquanto era feita a leitura da sentença de condenação, estava de pé
no cadafalso sustentado pelos carrascos. Era horrível aquele espetáculo
[...] E sob aquelas vestes, misteriosas e lúgubres, a vida só continuava
a manifestar-se através dos gritos horrorosos, que se extinguiram logo,
sob o facão.
[17]
Justamente, nesta fase, iniciou-se o questionamento da necessidade da
pena. Relevância histórica foi dada ao trabalho de Beccaria, Dos
Delitos e das Penas, no qual se afirma que se o homem não pode dispor de
sua vida, muito menos pode consentir que outrem dela disponha. Os
pensadores da época mostravam-se contrários à pena de morte. A Igreja
Católica teve decisiva influência para o término desta punição haja
vista que erigiu o preceito do bem comum e da reinserção social. A pena
tinha incumbência de ser: útil tanto para o criminoso, como para a
sociedade; digna, afastada da vingança e da crueldade; necessária
visando, antes de tudo, a paz social. A partir daí iniciou-se um
processo legislativo contrário à instituição da pena capital,
defendendo-se que ela poderia ser substituída por outras espécies como a
pecuniária e a composição. Podemos citar como exemplos a Lei Bávara
(nenhum crime é tão grave que a vida não possa ser concedida) e também a
Lei Sálica (a possibilidade das sanções com penas pecuniárias).
Desta forma, a Sociedade ao fim do século XVIII, início do século
XIX, estava imbuída nos novos pensamentos contrários à mencionada pena,
influenciada, ainda, pelo período áureo da humanização regido pela égide
da igualdade, fraternidade e liberdade como também pela Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão e a Constituição Americana de 1776.
Diante disso, a sociedade passou a admitir uma nova teoria da lei e do
crime, uma nova justificação moral ou política do direito de punir e a
abolição de antigas operanças. Foi nessa época que a Humanidade de todos
os cantos do mundo clamava pela extinção da referida pena, pois esta
não se adaptava mais à realidade cultural e ideológica da época em
estudo.
6 ÉPOCA CONTEMPORÂNEA
Hoje, embora remanesça em algumas legislações a pena de morte,
procura-se imprimir maior rapidez ao ato da execução. Para os
condenados à forca o tempo gasto entre a entrada do executor na cela e o
momento decisivo é de nove a 12 segundos, sendo de 20 a 25 segundos nas
prisões que não têm as celas junto às câmaras de execução.
Na morte pela guilhotina, desde a saída da cela da morte até o
certificado do verdugo de sentença cumprida, se gastam dois minutos. A
execução propriamente não toma mais de 20 segundos. A execução na
cadeira elétrica, entre a saída da cela e a execução toma de dois a
quatro minutos, conforme o Estado. Na execução por gás, o tempo para
cumprir a sentença varia de 40 segundos até 11 minutos.
[18]
A exposição desses dados leva à conclusão de que tem sido preocupação
dos legisladores não apenas matar sem causar dor, mas também matar com
rapidez. Por isto se afirma que a pena de morte não é modernamente
acompanhada de sofrimento, o que, entretanto, não é unânime na doutrina
escrita sobre o tema.
[3] JORGE, Fernando.
Pena de morte: sim ou não?: os crimes hediondos e a pena capital. São Paulo: Mercuryo, 1993, p. 53.
[7] NOVINSKY, Anita.
A inquisição. São Paulo: Brasiliense, 1993, p. 60.
[9] ZWEIG, Stefan.
Maria Antonieta. Rio de Janeiro: Guanabara, 1951, p. 377.
[14] HUGO, Victor.
O último dia de um condenado à morte. Rio de Janeiro: Newton Compton Brasil, 1995, p. 23.
[15] PETERS, Edward.
Tortura. São Paulo: Ática, 1989, p. 119.
[16] NOVINSKY, Anita.
A inquisição. São Paulo: Brasiliense, 1993, p. 68.
[17] FOULCAUT, Michel.
Vigiar e punir. 14. ed. Petrópolis: Vozes, 1996.
[18] MOREIRA, Geber. A pena de morte nas legislações antigas e modernas. In: BONFIM, B. Calheiros (Org.).
Pena de morte. Rio de Janeiro: Destaque, [s.d.], p. 146-147.