terça-feira, 11 de outubro de 2016

A “Revolta da vacina” novembro de 1904

A “Revolta da vacina”
novembro de 1904

Professora Sílvia M. L. Mota
O trabalho de pesquisa verificou-se nos periódicos constantes na Biblioteca Nacional, RJ, Brasil. As citações mantém-se fiéis aos originais.

“Semana maldita, some-te, mergulha no
grande abismo insondável do tempo,
onde há esquecimento para tudo.
O motim não tem fisionomia, não tem forma,
é improvisado. Propaga-se, espalha-se,
mas não se liga. O grupo que opera aqui não
tem ligação alguma com o que tiroteia acolá.
São independentes: não há um chefe geral
nem um plano estabelecido.”
Olavo Bilac, poeta
(1865-1918)

Nota introdutória

Pelos idos de 1904, o Rio de Janeiro ultrapassava períodos de convulsão social motivados pela reforma urbanística do centro da cidade, encetada pelo prefeito Pereira Passos, com apoio irrestrito do presidente Rodrigues Alves. O ambiente era favorável às manifestações de descontentamento no concernente às medidas aplicadas, como a demolição de residências populares, sem que o governo providenciasse o assentamento dos moradores em outras localidades.

A cidade abatia-se com a falta de saneamento básico, o que disseminava epidemias devastadoras como a febre amarela, a peste bubônica e a varíola. Para erradicar a varíola foi convidado o medico e sanitarista Oswaldo Cruz, então diretor-geral da Saúde Pública. O cientista convenceu o Congresso a aprovar a Lei da Vacina Obrigatória (31 de outubro de 1904), que permitia às brigadas sanitárias, escoltadas por policiais, entrarem nas casas para aplicar a vacina à força.

Desenvolvimento

Um furo de reportagem foi responsável pela difusão da notícia e, no dia 1º de outubro daquele ano, uma charge que ocupava a parte superior da primeira página do jornal Correio da Manhã, nas quinta e sexta colunas, ganhava o título: A Vaccinação. A Lei foi feita para os pequenos. Um monumento… gothico, que satirizava um hipotético monumento, que representaria a legitimidade histórica do método de imunização. Abaixo da estátua, a olhar para cima, um personagem simplório, com o dedo no queixo.[1]

O Correio da Manhã movimentou-se, com galhardia, para associar as medidas de Oswaldo Cruz à violência contra a população:
O governo cerrou ouvidos a prudentes avisos […]. Não ligou impportância á opposição de outros orgaos da imprensa. Só attendeu ao director de Saúde Publica que, para obter da população a observância dos preceitos hygienicos, não confia sinão na violência e na brutalidade. Não ha outros processos – dizem o Sr. Cruz e seus asseclas – para um povo atrazado como este.
Não é licito ter illusões sobre a sorte do projecto da terceira discussão. A Camara ha de aprovál-o como quizer o governo, embora divorciando-se cada vez mais do sentimento publico. O presidente ha de sanccionar a nova lei immediatamente, expedindo, em acto contínuo, o respectivo regulamento. Dentro de poucos dias teremos que assistir á invasão dos esbirros do sr. Cruz nas casas dos cidadãos que não estejam nas boas graças do governo, para, á força, vacccinál-os e á sua familia.
Para os poderosos e para os amigos do governo não haverá, entretanto, vaccinação obrigatoria, como não ha hoje as desinfecções, as fumigações, os expurgos violentamente praticados pelos servos do Santo Officio da Tortura Publica. As leis draconianas não são feitas para gente de alto cothurno. Os magnatas da Republica seguem os preceitos hygienicos que bem querem, sem que os incommode a auctoridade sanitaria que, si por ventura se mette a contrariál-os, recebe logo uma carta do ministro do interior, prevenindo-a de que são sagradas tão altas personagens.[2]

Logo depois, em 6 de outubro, o veículo esforçou-se por confirmar, a partir de uma reunião ocorrida no Palácio do Catete, a suspeita de que as intervenções poderiam tramitar sob o uso da força. Por outro lado, lançou dúvidas de que militares executassem as ordens. A partir dessa vertente, o jornal deixou de falar à população e passou à convocação velada de uma resistência dentro das fileiras do Exército:
Preparativos para a violência?

Hontem, ás 2 horas da tarde, no salão de honra da secretaria da justiça, realizou-se uma conferencia reservada entre os ministros do interior, da guerra e o chefe de policia, finda a qual o sr. Seabra partiu para o palácio do Cattete, onde conversou demoradamente com o presidente da Republica. Por seu lado, o marechal Argollo, logo que chegou ao quartel general, mandou chamar os generaes Costallat e Marinho, com os quaes teve também longa e reservada conferencia.
Todo esse movimento, segundo fomos informados, prende-se ás providências que vão ser tomadas ao ser decretada a vaccinação e revaccinação obrigatorias, cuja 3ª discussão foi hontem encerrada, e está portanto em vesperas de ser tornada lei entre nós.
Por ahi se póde calcular o que pretende fazer o governo para impor ao povo brasileiro a odiosa medida, contra a qual se têm manifestado todas as classes do paiz. [...]
O povo e sobretudo o operariado prepare-se para soffrer as violencias que estão sendo combinadas, mas com a alma e o coração tranquillos quanto á intervenção do Exercito nesse plano aterrorizador.
Aquelles que soffrem a indifferença e os desvarios do governo não descerão a servil-o para attentar contra a liberdade e a os direitos de um povo, que com elles está irmanado pela dor, que a todos acabrunha nesse pungitivo momento por que atravessa essa patria infeliz.[3]

Sobre a referida reunião, O Paiz salientou pronunciamento de Bricio Filho, articulista, médico e deputado federal: “[…] a minoria cumprira o seu dever, certa de que ninguem será aqui vaccinado compulsoriamente, embora a lei seja votada.” E estendeu-se na palavra de Barbosa Lima: “[…] não ha mais com que discutir e só ha que dizer, ao rematar esta deploravel campanha, aos meus concidadãos, que dignos da liberdade só são os povos capazes de se bater por ella e que a situação, creada por esse memoravel acontecimento, só me merece, a mim, representante do povo, o mais profundo desprezo!”[4]

Em 7 de outubro, o Correio da Manhã anunciou o início, a partir do dia seguinte, de campanha do jornal contra a obrigatoriedade da vacina e que seria realizada por Bricio Filho, fundamentada no fato de que a vacina em alguns casos seria perigosa, “[…] podendo até causar a morte.”[5]

No mesmo periódico e, na mesma data, nasceu a matéria que, até hoje é citada, sempre que se fala na revolta da vacina:
VACCINA OU MORTE

O governo arma-se desde agora para o golpe decisivo que pretende desferir contra os direitos e liberdades dos cidadãos deste paiz. A vaccinação e revaccinação vão ser lei dentro em breve, não obstante o clamor levantado de todos os cantos e que foi ecoar na Camara dos Deputados atravez de diversas representações assignadas por milhares de pessoas. Da posse desta clava, que o incondicionalismo bajulador e mesureiro preparou, vae o governo do sr. Rodrigues Alves saber si o povo brasileiro já se acanalhou ao ponto de abrir as portas do lar á violência ou si conserva ainda as tradições de brio e da dignidade com que, da monarchia democrática passou a esta Republica de iniquidades e privilegios.
O attentado planejado alveja o que de mais sagrado contém o patrimonio de cada cidadão: pretende se esmagar a liberdade individual sob a força bruta, transformar o domicilio, santuario que a Constituição garante inviolavel, em valhacouto de canalhas, onde os esbirros policiaes hão de floretear o cacete e manejar a laracha para abrir campo á hygiene official; pensa-se em reduzir a família brasileira a um conjuncto de entes indefesos, obrigando-a a ficar sob a ameaça imminente da morte, resultante dos mesmos descuidos e irreflexões que já cortaram a existência a infelizes desamparados.
Executar semelhante lei é condemnar todo um povo á mais humilhante das degradações, é feril-o no que elle tem de mais sensivel para, provocando-lhe a colera, saber si é capaz de reagir contra a decretação da propria escravatura. Vexames da ordem desses, ou anniquilam de vez os direitos de uma sociedade inteira, ou servem para, despertando-lhe os sentimentos adormecidos, dar inicio á sua completa libertação.[6]

Como se lê, a convocação à revolta popular é explícita e, na edição do 9 de outubro, o jornal reclamou acintosamente “[…] não é possível manter a impassibilidade ante o rumo que as coisas vão tomando.”[7]

Em 10 de outubro de 1904, o Correio da Manhã expôs crítica acirrada a Oswaldo Cruz, escrita por Bricio Filho, que não se opunha à vacina, mas à sua obrigatoriedade:
VACCINAÇÃO OBRIGATORIA

Logo que se fez doutor, teve o moço forte bafejo da fortuna e celere zarpou para os centros scientificos do velho mundo onde, com uma tenacidade digna de registro, entrou a fundo nas pesquizas da bacteriologia, conheceu minuciosamente todos os caldos de cultura, praticou com afinco a preparação dos sôros e mais productos injectaveis, e tornou aos patrios lares, sempre actuando dentro dos limites da mesma especialidade.
Aqui, continuou como bacteriologista, não se atirou aos lances da clinica, não se abeirou dos leitos dos doentes, não se habituou a sentir as dores dos enfermos, não testemunhou as angustiosas scenas das casas onde se adoece, e não adquiriu essa larga experiencia tão neccessaria ao facultativo para, quando chamado a dirigir departamentos da hygiene publica, estar em condições de pesar as circumstancias, de soffrear os impetos de mando, só propondo medidas estrictamente indispensaveis, lembrando-se de que, si por um lado tem o dever de resguardar a saúde da collectividade, por outro precisa manobrar com cautela, preso ao respeito que reclamara o lar onde rebente a molestia de notificação compulsoria, escravizado á observancia das garantias que a Constituição estabelece.[8]

Em 13 de outubro, a convocação que contribuiu para o apavoramento da população:
OS PERIGOS DA VACCINA
Retrato de uma vítima

Acha-se em exposição á porta do Correio da Manhã, para que o publico possa bem avaliar do que está arriscado com a vaccinação obrigatoria, o retrato de uma das muitas victimas da vaccina, publicado no supplemento do numero de setembro deste anno, do periodico The Liberator.
A proposito desse caso escreve aquelle periodico o seguinte, cujo texto em inglez, expomos tambem ao lado do retrato.
O retrato é de Benjamin F. Olewine, fallecido aos 23 annos de edade, em 23 de julho de 1897, na rua 11, n. 304, em Altvona.

“Foi vaccinado dois annos e meio antes da sua morte. Quando soffreu a vaccinação, a sua pelle era lisa e limpa, macia e bella, e elle, além disso, gosava de perfeita saúde. Mas, contemplae attentamente o seu retrato, e vêde o miserrimo estado a que chegou posteriormente. E qual a causa dessa assombrosa mudança? Qual? simplesmente a vaccinação, o grande destruidor da felicidade humana, da saúde humana e da vida humana. A vaccinação, a propagadora por todos os modos da molestia immunda, o monstro que pollúe o sangue innocente e puro de nossos filhos com as vis excreções expellidas de animaes morbidos, e de natureza a contaminar o systema de qualquer ente vivo.”[9]

A matéria expõe que os receios condizentes aos efeitos da vacinação não se limitavam ao contexto nacional. A homilia alarmista do Correio da Manhã era compartilhada por outros veículos de comunicação mesmo no velho mundo. O espaço ocupado por Bricio Filho nesse momento é modalizador: sendo favorável à vacinação, contrapunha-se, no entanto, à obrigatoriedade.

O trecho em epígrafe alude à “revolta da vacina”, materialização traumática do confronto entre discursos distintos acerca dos procedimentos públicos de combate às epidemias.[10] Ocorrida entre 10 a 16 de novembro de 1904 no Rio de Janeiro, destaca-se como um marco histórico na trajetória das políticas públicas brasileiras de saúde. Trata-se de um movimento popular instaurado em defesa dos direitos dos cidadãos de não serem tratados de forma arbitrária pelo governo.

Em 5 de novembro de 1904, o apelo à resistência popular intensifica-se:
APELLO AO POVO
Contra a vaccinação obrigatória

Consumou-se a iniquidade. O presidente da Republica acaba de sanccionar o decreto legislativo que torna obrigatoria a vaccinação em todo o territorio brasileiro.
Nunca foi tão clamoroso o descaso pela opinião publica. De nada valeram os reiterados protestos do povo desta capital contra a despotica medida pelo governo, encommendada á maioria legislativa.
Mas não se esgotaram ainda todos os recursos. Um meio digno resta-nos ainda para conseguirmos eliminar em breve, da legislação republicana, o inconstitucional decreto com que o governo acaba de affrontar o espirito liberal da nação.
Em favor desse alvitre fala bem alto o exemplo da Inglaterra, todos os dias invocada pelos nossos doutores constitucionais. Lá, como em toda a parte, o medicalismo conseguiu um dia dos delegados do povo a lei da vaccinação obrigatoria. Contra ella protestaram as tradições liberaes da élite britannica e o conjuncto do proletariado, o mais sériamente ameaçado pelo iniquo decreto parlamentar. [...]
Sigamos nós outros o exemplo da Inglaterra e muito breve veremos revogada o infanmante decreto que o presidente da Republica houve por bem sanccionar.[11]

Ainda que eloquentes fossem as convocações, somente no dia 6 de novembro surgiram no jornal informações sobre mobilizações contra a vacinação. Mobilizações, no entanto, já organizadas pela Liga Contra a Vaccinação Obrigatoria, o que sugeria que a insatisfação por parte da sociedade era referida, mas não vocalizada.
LIGA CONTRA A VACCINAÇÃO OBRIGATORIA

A reunião de hontem - No Centro das classes operarias - Discursos de protestos - A indignação popular - Duas mil pessoas. Á bala! - Movimentação policial - Manifestação ao Correio da Manhã - A fundação da liga e sua directoria - Varias notas.

Na reunião, assumiu a cadeira da presidência o senador Lauro Sodré que, entre aplausos da multidão estimada em cerca de duas mil pessoas, declara de forma vibrante: “[…] sinto-me feliz ao ver que a fibra patriotica levanta-se nesse justo protesto.”[12]

O tempo dramático culmina com prisões, confrontos e o próprio empastelamento do jornal, que ficaria durante o restante do mês de novembro sem circular. Um espaço privilegiado desse momento no periódico são as chamadas para os episódios que se seguiram.

O Correio da Manhã, em 9 de novembro, através de Gil Vidal, assinala: “Atmosphera de aprehensões que a lei da vaccinação obrigatoria está causando no espírito publico.[13]

Inúmeras pessoas negaram-se submeter à imunização, por desconhecerem os benefícios decorrentes da intervenção. Jornais da oposição criticavam a ação do governo e difundiam supostos perigos provocados pela vacina. Para além disso, o rumor de que a vacina teria de ser aplicada nas “partes íntimas” do corpo, o que levaria as mulheres a despirem-se diante dos vacinadores, agravou a ira da população, que se rebelou. Nesse contexto, as primeiras campanhas de vacinação pública foram achincalhadas, sob protestos da população, sendo necessário, até mesmo, o uso da força policial.

Os acontecimentos foram assustadores.

Em 10 de novembro, em decorrência da proibição de reuniões públicas estabelecida pelo governo, a polícia investiu contra estudantes que pregavam resistência à vacinação e foram recebidos a pedradas, ocorrendo as primeiras prisões.

Nessa data, o Correio da Manhã publicou, na íntegra, o projeto de regulamento do serviço de vacinação e revacinação contra a varíola submetido à apreciação de vários convidados do ministro da justiça e salienta: “Leia o publico esta estupenda obra sahida daquella forja incansavel do largo do Rocio […]”[14]
A LEI DO ARROCHO
Regulamento monstruoso
Violencias inqualificaveis
Ultrage ao povo

Invasão do lar e das casas de commercio - Novo registro civil - Addendo á reforma eleitoral - Condição para o casamento - Patriotismo experimentado na vaccina - Exercito, Armada e Guarda Nacional - O funccionalismo publico - Os operarios e os mestres de obras - As casas de commodos, os hoteis e as estalagens - Quem não fôr vaccinado tem de morar na rua - Condição para ser creado - Multas sobre multas - Terra de milhões - Insensatez ou loucura?[15]

Realmente, com a aprovação da medida pelo Congresso, foram estipuladas multas e restrições aos infratores, causando grandes reações. O Atestado de Vacinação passou a ser exigido trivialmente, desde a obtenção de um emprego público ao casamento.

Para os pesquisadores e estudiosos desse episódio, o texto redigido por Oswaldo Cruz era autoritário demais e pouco explicativo, o que gerou uma confusa e revoltada população.

Em 11 de novembro, o Correio da Manhã publicou a indignação de Gil Vidal, que nomeou o documento legal de “o monstruoso projecto”:
Foi extrema a indignação que o projeto do regulamento da vaccinação obrigatoria excitou no ânimo de todos os habitantes do Rio de Janeiro, cuja sensibilidade ainda não embotaram interêsses dependentes do governo e da administração sanitaria. Esse sentimento echoôu em todos os orgãos da imprensa que se manifestaram sobre o monstruoso projecto […][16]

Nessa edição, o jornal corroborou, ao enfatizar a adjetivação:
Esse monstro - é o qualificativo que merece o projecto de regulamentação da vaccinação e revaccinação obrigatorias em toda a republica – representa um dos maiores attentados que se tem praticado neste paiz, subvertendo todas as consciencias e fazendo mesmo com que os homens mais pacatos se levantem cheios de indignação deante da affronta atira á face da Nação.[17]

Na mesma data, O Paiz expôs, sem muito destaque “Conflictos de hontem: vaias e arruaças”.[18]

Em 11 de novembro, as forças policiais e militares receberam ordens para reprimir comício da Liga contra a Vacinação Obrigatoria e o confronto com a população generalizou-se para outras áreas do centro da cidade, causando o fechamento do comércio.

No dia seguinte, a imprensa denunciava, através do Correio da Manhã:
Parece proposito firme do governo violentar a população desta capital por todos os meios e modos. Como não bastasse o Codigo de Torturas e a vaccinação obrigatoria, entendeu provocar essas arruaças que, ha dois dias ja, trazem em sobressalto o povo. Desde ante-ontem que a policia, numa ridicula exibição de força, provoca os transeuntes, ora desafiando-os directamente, ora aggredindo-os, desde logo, com o chanfalho e com a pata de cavallo, ora, enfim, levantando proibições sobre determinados pontos da cidade.[19]

Em 12 de novembro, com a presença dos representantes da Liga, Dr. Vicente de Souza, o deputado Barbosa Lima e sob a presidência do senador Lauro Sodré, cerca de 4 mil pessoas saíram em passeata para o Palácio do Catete.

Na ocasião, a Associação de Resistentes dos Marinheiros e Remadores declarou: “Esta associação, constituida para libertar-se do dominio da escravidão, diante do monstruoso attentado contra a liberdade individual não podia deixar de protestar contra um acto illegal decretado pelo governo de uma republica que se diz civilisada.”[20] Assinou o documento, o secretário geral Jose Joaquim da Silva.

A Gazeta de Noticias, de 13 de novembro, descreveu a convulsão social:
OS FACTOS DE HONTEM
AS ARRUAÇAS
A reunião no Centro das Classes Operarias
CORRERIAS
PROVIDENCIAS DA POLICIA
VAIAS

No Largo de S. Francisco
Como ante-hontem, repetiram-se hontem as correrias e arruaças dos dous dias anteriores. Como na vespera, tiveram principio no largo de S. Francisco.
Desde que se manifestou o conflicto, deu-se a intervenção da força armada, segundo ordem do Dr. chefe de policia, que, por intermedio de seus delegados, determinara que a intervenção só se désse em caso de conflicto ou attentado á propriedade. […]
O primeiro conflicto
Na rua do Theatro, do lado de Theatro São Pedro, estava postado um piquete de cavallaria da policia. Ao approximar-se o grupo de populares, a gritos e a vaias, a força tomou posição em linha, prompta a agir, caso fosse necessario. A movimentação do piquete de cavallaria aterrorisou um tanto os populares, que recuaram.
Depois, julgando talvez que a cavallaria se oppuzesse á passagem, avançaram resolutos, hostilisando a força a pedradas.
O commandante da força mandou avançar tambem, dando-se o choque. As espadas rebrilharam e logo em seguida estampidos repetiram-se como se fossem tiros de revolver.
[…] Não foi ninguem ferido.
Serenado mais ou menos o animo popular naquelle trecho, seguiu a força a formar na praça Tiradentes, fazendo juncção com outro piquete que alli se achava postado.[21]

O Correio da Manhã publicou em 13 de novembro, sob a assinatura de Bricio Filho, uma ferrenha crítica a Oswaldo Cruz:
Quem quizer olhar direito para o que tristemente ocorre neste momento verificará, sem dúvida, que as scenas desenroladas são o resultado da obstinação em fazer ouvidos moucos aos clamores incessantes vibrados com estrepito. O Director Geral da Saúde Pública foi, desde o principio da sua administração, um privilegiado, um arbitrario, um despota, com o mais soberano desprezo das garantias constitucionaes. Arrimado nos infantes de palacio, seguro do apoio presidencial, certo de contar com a satisfação dos mais extravagantes de seus multiplos caprichos, o chefe audacioso do serviço sanitario de hygiene insurgiu-se contra tudo e contra todos, amarfanhou inclusive a classe medica, acabando por manter prisioneiro o ministro do interior, a quem começou a falar de superior a subalterno, entrando-lhe sempre pela secretaria com arrogancia e com soberba. Ao manifestar o minimo desejo, teve a seus pés autoridades genuflexas, obedientes e passivas, embora de alta posição. Executou as medidas que em sua elevada sabedoria reputou convenientes e fez quantas regulamentações lhe pareceram proveitosas, sem que o governo se lembrasse de chamar o concurso dos competentes no ramo da medicina e da jurisprudencia.[22]

Algumas contraditórios à convulsão social foram instauradas. Eis o disposto no jornal O Paiz, de desse data, pelas palavras de Pangloss:
O DIA

Enquanto se perde tempo e se despende energia nessa agitação injustificavel a pretexto da vaccinação obrigatoria, vamos deixando de lado as questões que realmente nos interessam e que affectam vivamente a situação do paiz. […]
A populaça na rua, a cavallaria a galope, as casas fechadas, alguns tiros de revolver e muitos vivas aos heroes do dia – eis o que constitue a affirmação solemne da independencia de caracter para os nossos “patriotas”. O paiz so vai bem quando a malta patriotica se resolve a occupar o largo de S. Francisco e a rua do Ouvidor…[23]

Ainda em 13 de novembro, na praça Tiradentes, uma multidão aglomerou-se e não obedeceu à ordem de dispersar. Houve troca de tiros e a revolta se espalhou por todo o centro da cidade. A população incendiou bondes, quebrou combustores de iluminação e vitrines de lojas, invadiu delegacias e o quartel da rua Frei Caneca. Mais tarde, os tumultos chegaram aos bairros da Gamboa, Saúde, Botafogo, Laranjeiras, Catumbi, Rio Comprido e Engenho Novo.

Em 14 de novembro, o Correio da Manhã publicou, em primeira e segunda páginas:
VACCINAÇÃO OBRIGATORIA
REACÇÃO DO POVO

Regimen do terror – Os acontecimentos de hontem – Façanhas da policia – Mortes – Feridos – A reunião do ministerio do interior – Bondes virados e queimados – Ataque ao gazometro – Suspensão do trafego urbano – Cidade às escuras – Movimento de força – Exercito e Marinha – Aspecto da cidade – Attitude do governo – Provocações – No largo do Rocio – No Cattete – Na Prainha – Na Avenida Passos - Barricadas – Um quartel e delegacia assaltados – Na Central de Policia – Acclamações ao Correio da Manhã – A rua do Ouvidor – Em nossa redacção – Notas diversas – Ultima hora.

MISERIA E MORTE
Está completa a divisa desse governo impatriotico e cobarde: o povo deste paiz já estava preso pelas algemas da miseria, surge agora a bala assassina da policia impondo obediencia a novos vexames e a maiores extorsões.
E, porque o povo quer demonstrar a sua reprovação, porque o povo deseja recorrer à Justiça do paiz, o governo cerca-se da propria força sustentado pelos impostos que cobra, e espalhando o terror pela cidade inteira, quer forçal-o á submissão com as balas que por todos os cantos deixam victimas.
O que se está vendo por essas ruas da capital da Republica não é um motim de arruaceiros, como classificou o mercenarismo, é o assassinato do povo perpetrado por ordem do governo.[24]

A Gazeta de Noticias, desse mesmo amanhecer, estampou em letras garrafais: Os conflictos de hontem: mortes e ferimentos:
OS FACTOS DE HONTEM

Os acontecimentos de hontem foram mais graves que os dos dias antecedentes.[25] […]

Na rua do Sacramento
No ar espresso fumo, negro, o escurecer o céu, em toda a extensão das trincheiras, homens, garotos e guardas nacionaes fardados, carregados de pedras, empunhando revolvers. Morra a policia! Abaixo a vaccina – gritavam.
Uma outra força pretendeu debandal-os, entrando pela rua de S. Jorge. Travou-se o teroteio, terrivel, medonho. Cahiram alguns feridos no chão. Da policia tambem foram feridos alguns soldados.[26] […]

A Carris Urbanos
O número total de bonds incendiados é de 22, sendo calculado o prejuizo em cerca de 80:000$000.[27] […]

Mortos e feridos
Paizanos e soldados[28]

Foi um dia de terror. Ocorreram tiros, brigas, engarrafamento de trânsito, comércio fechado, transporte público assaltado e queimado, linhas telefônicas cortadas, lampiões quebrados às pedradas, destruição de fachadas dos edifícios públicos e privados, árvores derrubadas: decididamente, o povo do Rio de Janeiro revoltara-se contra o projeto de vacinação obrigatório proposto pelo sanitarista Oswaldo Cruz.

No mesmo 14 de novembro, os conflitos persistiram por toda a cidade. O exército dividiu-se. O comandante da Escola Militar da Praia Vermelha, general José Alípio Costallat, foi deposto por um colega, o general Silvestre Travassos - que morreria horas depois, num tiroteio travado com as forças legalistas na rua da Passagem, no comando de cerca de trezentos cadetes da Escola Militar que marchavam rumo ao Palácio do Catete para depor o presidente Rodrigues Alves. Outro golpista, o senador Lauro Sodré, foi preso. Oswaldo Cruz apresentou ao presidente Rodrigues Alves a sua demissão do cargo de diretor geral da Saúde Pública - pedido que não foi aceito.[29]

Eis a notícia, da manhã seguinte, no Jornal do Commércio:

As arandelas do gás, tombadas, atravessaram-se nas ruas; os combustores de iluminação, partidos, com os postes vergados, estavam imprestáveis; os vidros fragmentados brilhavam nas calçadas; paralelepípedos revolvidos, que servem de projéteis para essas depredações, coalhavam a via pública; em todos os pontos destroços de bondes quebrados e incendiados, portas arrancadas, colchões, latas, montes de pedras, mostravam os vestígios das barricadas feitas pela multidão agitada. A viação urbana não se restabeleceu e o comércio não abriu suas portas.[30]

Também, o jornal Correio da Manhã expôs a tragédia:
VACCINAÇÃO OBRIGATORIA
REACÇÃO DO POVO

O dia de hontem – No palacio – No Congresso – Na Central da Policia – No ministerio da justiça – Continúa a mashorca – Em plena cidade – Nos suburbios – Forte Resistencia na Saude – As forças do exercito – A Escola Militar sublevada – A Escola do Realengo – Combate renhido – A força da policia desbaratada – O senador Lauro Sodré e o deputado Barbosa Lima – Prisão do dr. Vicente de Souza e do major Gomes de Castro por ordem do governo – Delegacias tomadas pelo povo – Sahida do “Deodoro” – Torpedeiras de fogos accesos – Situação gravissima.

O que se está passando […] desta cidade é a demonstração […] do estado de demencia a que chegou o governo, assessorado pelo energumeno ministro da justiça. […]
O próprio ministro do interior já declarou que o seu director de saude publica abre mão do capricho pueril que o incitava a querer levar por violencia a imposição da vaccinação tal como ella se pretendia fazer no seu disparatado regulamento.
Este foi por todos repudiado, até pelo seu proprio autor, que o engeitou, convencido pelos competentes de que o parto de seu acanhado cerebro de administrador era um producto teratologico, repugnante, asqueroso, a que se devia negar todas as condições de viabilidade. De sorte que, para pôr termo á agitação popular, justificada pela repulsa em nome do direito e da liberdade, bastava que o governo declarasse não fazer mais questão da malfadada lei.
Dahi não viria quebra para o seu prestigio nem se diminuiria o principio respeitavel da autoridade. Para um governo de opinião, emanado do voto popular, é sempre honroso ceder á opinião, quando esta não se manifeste contra os principios cardeaes que regem o systema, contra o que esta regular e legalmente estabelecido contra uma medida reputada de salvação publica.[31]

O governo teve 32 baixas, nenhuma fatal. Entre os rebeldes, três mortos e sete feridos.

O Paiz lamentou as ocorrências, em longa matéria:
A SUBLEVAÇÃO DA ESCOLA MILITAR

Os antecedentes do movimento – Deposição do Commandante da escola – O intuit dos sublevados – Prisões de alliciadores na Escola do Realengo – Preparativos de ataque – A columna atacante – O reconhecimento – Regresso da columna – As providencias no mar – As desordens nas ruas – Interrupção do trafego de bonds – Mortes e ferimentos – Notas diversas.

Após onze annos de vida pacifica conquistada a partir de muito lucto e de muito sangue, a Republica está novamente em crise. O que até hontem á noite não parecia ser senão a arruaça habitual no Rio de Janeiro, sem maior gravidade do que a resultante da desordem e da indispensavel repressão, assumiu, ás primeiras horas dessa noite, um caracter immensamente mais grave e profuncamente lamentavel: generaes do exercito, officiaes de alta patente sublevaram parte do corpo de alumnus da Escola Militar, tentaram sublevar os alumnus da Escola do Realengo.”[32]

Em 15 de novembro, os tumultos continuaram, sendo os maiores focos no Sacramento e na Saúde. Continuaram os ataques às delegacias, ao gasômetro, às lojas de armas. No Jardim Botânico, operários de três fábricas investiram contra os seus locais de trabalho e contra uma delegacia. Estivadores e foguistas reivindicaram junto às suas empresas a suspensão dos serviços. Ocorreram conflitos ainda nos bairros do Méier, Engenho de Dentro, Encantado, São Diego, Vila Isabel, Andaraí, Aldeia Campista, Matadouro, Catumbi e Laranjeiras.

Horácio José da Silva, conhecido como Prata Preta, liderou as barricadas na Saúde e os jornalistas acompanharam os episódios, com visitas a alguns locais de conflito. Assim descreveram o episódio: “[…] multidão sinistra, de homens descalços, em mangas de camisa, de armas ao ombro uns, de garruchas e navalhas à mostra.”[33] A Marinha atacou os rebeldes e as famílias fugiram medrosas. Em 16 de novembro, o governo decretou o estado de sítio, mas os conflitos persistiram em vários bairros. As tropas do Exército e da Marinha invadiram a Saúde, aprisionando Prata Preta.

Em decorrência da convulsão social exacerbada, o governo findou por revogar a obrigatoriedade da vacinação contra a varíola. A polícia aproveitou os tumultos e realizou uma varredura das pessoas excluídas que perambulavam pelas ruas da capital da República. Todas foram enviadas à Ilha das Cobras, espancadas, amontoadas em navios-prisão e deportadas para o Acre, a fim de trabalharem nos seringais. Muitas não chegaram ao destino, pois morreram durante a viagem.

A revolta deixou um saldo de 30 mortos, 110 feridos e 945 presos, dos quais 461 foram deportados para o Acre.

Em fevereiro de 1905, o quadro epidêmico da varíola na cidade do Rio de Janeiro indicava a doença como quase erradicada. Mais uma vez, Gil Vidal associou o evento às ações de Oswaldo Cruz: “Felizmente não se têm realizado as tristes prophecias do sr. Cruz. S. ex. tambem annunciou o incremento formidavel da variola sem a vaccinação obrigatoria. Esta caíu, e a variola, longe de recrudescer, quasi que desappareceu.”[34]

Nota final

Episódios lamentáveis como os relatados neste trabalho, destacam a relevância da autoconscientização dos indivíduos frente às novas descobertas da Medicina. Se, no início do Século XX, os criadores das políticas de saúde tivessem como referencial princípios bioéticos hoje decantados, conflitos dessa natureza seriam evitados, pois a Bioética se perfaz num eficiente e eficaz instrumento de trabalho para mediação das situações motivadas por conflitos. Pesquisa recente, sobre a produção bibliográfica bioética brasileira, nos últimos doze anos, demonstrou que assuntos diretamente relacionados à saúde pública corresponderam a menos de 1% dos trabalhos realizados.[35] Por isso, faz-se necessária a incrementação de estudos que se relacionem com o tema bioética associado à saúde pública.

_________________________
Notas:

[1] A TERCEIRA discussão, n. 1.206, p. 1, 1º out. 1904.
[2] Idem.
[3] PREPARATIVOS para a violencia? n. 1.211, p. 1, 6 out.1904.
[4] A VACINA, n. 7303, p. 1, 6 out. 1904.
[5] VACCINAÇÃO obrigatoria, n. 1.212, p. 1, 7 out. 1904.
[6] VACCINA ou morte, n. 1.212, p. 1, 1904.
[7] VACCINAÇÃO obrigatoria, n. 1.214, p. 1, 9 out. 1904.
[8] BRICIO FILHO. Vaccinação obrigatoria, n. 1.215, p. 1, 10 out. 1904.
[9] OS PERIGOS da vaccina: retrato de uma victima, n. 1.218, p. 1, 13 out. 1904.
[10] ALVES, fev. 2013.
[11] APELLO ao povo: contra a vaccinação obrigatoria, n. 1.241, p. 1, 5 nov. 1904.
[12] LIGA contra a vaccinação obrigatoria, n. 1.242, p. 1, 6 nov. 1904.
[13] VIDAL, n. 1.245, p. 1, 9 nov. 1904.
[14] A LEI do arrocho: regulamento monstruoso: violências inqualificaveis: ultrage ao povo, n. 1.246, p. 1, 10 nov. 1904.
[15] Idem.
[16] VIDAL, n. 1.247, p. 1, 11 nov. 1904.
[17] A LEI do arrocho: na Camara, n. 1.247, p. 1, 11 nov. 1904.
[18] CONFLICTOS de hontem: vaias e arruaças, n. 7339, p. 1, 11 nov. 1904.
[19] ARRUAÇA policial: novas violencias, n. 1.248, p. 1, 12 nov. 1904.
[20] LIGA contra a vaccinação obrigatória: grande reunião popular, n. 1.248, p. 1, 12 nov. 1904.
[21] OS FACTOS de hontem: as arruaças: a reunião no Centro das Classes Operarias: correrias: providencias da policia: vaias: no Largo de S. Francisco, n. 318, p. 1, 13 nov. 1904.
[22] BRICIO FILHO, n. 1.249, p. 1, 13 nov. 1904.
[23] PANGLOSS, n. 7341, p. 2, 13 nov. 1904.
[24] VACCINAÇÃO obrigatoria: reacção do povo, n. 1.250, p. 1-2, 14 nov. 1904.
[25] OS CONFLICTOS de hontem: mortes e ferimentos, n. 319, p. 1, 14 nov. 1904.
[26] Idem.
[27] OS CONFLICTOS de hontem: mortes e ferimentos, n. 319, p. 2, 14 nov. 1904.
[28] Idem.
[29] OSWALDO Cruz: o médico do Brasil: a revolta da vacina, 2016.
[30] Idem.
[31] VACCINAÇÃO obrigatoria: reacção do povo, n. 1.251, p. 1, 15 nov. 1904.
[32] A SUBLEVAÇÃO da Escola Militar, n. 7343, p. 1, 15 nov. 1904.
[33] Cf. CRONOLOGIA da Revolta da Vacina,  2016.
[34] VIDAL, n. 1.305, p. 1, 5 fev. 1905.
[35] BRAGA, apud GUEDES, 2004, p. 1765.

Referências

1904: REVOLTA da Vacina: a maior batalha do Rio. Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. A Secretaria, 2006. p. 5. (Cadernos da Comunicação. Série Memória). Disponível em: http://www.rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/4204434/4101424/memoria16.pdf. Acesso em: 10 out. 2016.

A LEI do arrocho: na Camara. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, Anno IV, n. 1.247, p. 1, 11 nov. 1904. Director Edmundo Bittencourt.

A LEI do arrocho: regulamento monstruoso: violências inqualificaveis: ultrage ao povo. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, Anno IV, n. 1.246, p. 1, 10 nov. 1904. Director Edmundo Bittencourt.

A REVOLTA da vacina. Revista da Vacina: Ministério da Saúde: centro cultural da saúde, Rio de Janeiro. Disponível em: http://www.ccms.saude.gov.br/revolta/revolta.html. Acesso em: 10 out. 2016.

A SUBLEVAÇÃO da Escola Militar. O Paiz, Rio de Janeiro, Anno XXI, n. 7343, p. 1-4, 15 nov. 1904.

A TERCEIRA discussão. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, Anno IV, n. 1.206, p. 1, 1º out. 1904. Director Edmundo Bittencourt.

A VACINA. O Paiz, Rio de Janeiro, Anno XXI, n. 7303, p. 1, 6 out. 1904.

ALVES, Wedencley. Um jornal no dissenso: o Correio da Manhã e a campanha contra a vacinação obrigatória. Revista Eletrônica de Com. Inf. Inov. Saúde, Rio de Janeiro, v. 6, n. 4. Suplemento, fev. 2013. Disponível em: http://www.reciis.icict.fiocruz.br. Acesso em: 10 out. 2016.

APELLO ao povo: contra a vaccinação obrigatoria. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, Anno IV, n. 1.241, p. 1, 5 nov. 1904. Director Edmundo Bittencourt.

ARRUAÇA policial: novas violencias. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, Anno IV, n. 1.248, p. 1, 12 nov. 1904. Director Edmundo Bittencourt.

BRICIO FILHO. Vaccinação obrigatoria. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, Anno IV, n. 1.215, p. 1, 10 out. 1904. Director Edmundo Bittencourt.

BRICIO FILHO. Vaccinação obrigatoria. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, Anno IV, n. 1.249, p. 1, 13 nov. 1904. Director Edmundo Bittencourt.

CONFLICTOS de hontem: vaias e arruaças. O Paiz, Rio de Janeiro, Anno XXI, n. 7339, p. 1, 11 nov. 1904.

CRONOLOGIA da revolta da vacina. Revista da Vacina: Ministério da Saúde: centro cultural da saúde, Rio de Janeiro. Disponível em: http://www.ccms.saude.gov.br/revolta/revolta2.html. Acesso em: 10 out. 2016.

GUEDES, Cristiano. Bioética e saúde pública. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 20, n. 6, p. 1765-1772, nov./dec. 2004.

LIGA contra a vaccinação obrigatoria. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, Anno IV, n. 1.242, p. 1, 6 nov. 1904. Director Edmundo Bittencourt.

LIGA contra a vaccinação obrigatória: grande reunião popular. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, Anno IV, n. 1.248, p. 1, 12 nov. 1904. Director Edmundo Bittencourt.

OS CONFLICTOS de hontem: mortes e ferimentos. Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, Anno XXXI (A), n. 319, p. 1-2, 14 nov. 1904.

OS FACTOS de hontem: as arruaças: a reunião no Centro das Classes Operarias: correrias: providencias da policia: vaias: no Largo de S. Francisco. Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, Anno XXXI, n. 318, p. 1, 13 nov. 1904.

OS PERIGOS da vaccina: retrato de uma victima. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, Anno IV, n. 1.218, p. 1, 13 out. 1904. Director Edmundo Bittencourt.

OSWALDO Cruz: o médico do Brasil: a revolta da vacina. Projeto Memória 2003, Banco do Brasil. Disponível em: http://www.projetomemoria.art.br/OswaldoCruz/biografia/02_revolta.html. Acesso em: 11 out. 2016.

PANGLOSS. O dia. O Paiz, Rio de Janeiro, Anno XXI, n. 7341, p. 2, 13 nov. 1904.

PREPARATIVOS para a violencia? Correio da Manhã, Rio de Janeiro, Anno IV, n. 1.211, p. 1, 6 out. 1904. Director Edmundo Bittencourt.

VACCINA ou morte. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, Anno IV, n. 1.212, p. 1, 7 out. 1904. Director Edmundo Bittencourt.

VACCINAÇÃO obrigatoria. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, Anno IV, n. 1.212, p. 1, 7 out. 1904. Director Edmundo Bittencourt.

VACCINAÇÃO obrigatoria. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, Anno IV, n. 1.214, p. 1, 9 out. 1904. Director Edmundo Bittencourt.

VACCINAÇÃO obrigatoria: reacção do povo. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, Anno IV, n. 1.250, p. 1-2, 14 nov. 1904. Director Edmundo Bittencourt.

VACCINAÇÃO obrigatoria: reacção do povo. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, Anno IV, n. 1.251, p. 1-2, 15 nov. 1904. Director Edmundo Bittencourt.

VIDAL, Gil. A condemnação dos expurgos. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, Anno V, n. 1.305, p. 1, 5 fev. 1905. Director Edmundo Bittencourt.

VIDAL, Gil. Agitação honrosa. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, Anno IV, n. 1.245, p. 1, 9 nov. 1904. Director Edmundo Bittencourt.

VIDAL, Gil. O monstruoso projecto. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, Anno IV, n. 1.247, p. 1, 11 nov. 1904. Director Edmundo Bittencourt.

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

La diosa íbera de la fertilidad [Divulgação]

Los rituales religiosos del mundo íbero han sido siempre todo un enigma. Parece que en este pueblo prevalecía el culto de las divinidades femeninas, de carácter telúrico, aunque también rendían culto al sol y la luna. Ahora, las excavaciones llevadas a cabo por el Centro Andaluz de Arqueología Ibérica (CAAI) en el oppidumde Puente Tablas, en las cercanías de Jaén, han arrojado luz sobre estos ritos.
FUENTE | El País Digital
20/03/2012

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Ha sido el descubrimiento de una estela antropomorfa el que ha llevado a los arqueólogos a vincularlo con una diosa íbera sobre la fertilidad. Las excavaciones, según ha explicado el director del CAAI, Arturo Ruiz, han permitido localizar una piedra tallada, muy bien conservada, que mostraba dos brazos con las manos abiertas sobre el vientre y restos de un posible cinturón. Se encontraba justo en el centro de la puerta sur del yacimiento, junto a una pequeña capilla lateral, un corredor que estuvo activo durante el siglo IV antes de nuestra era. “Estamos en condiciones de afirmar que la estela representa, esquemáticamente, a una divinidad, posiblemente femenina y dedicada a la fertilidad”, subraya Ruiz.

Al mismo tiempo, en la segunda fase de las excavaciones, se ha documentado la realización de un ritual de sacrificio de un grupo de 13 cerdos domésticos y tres cabras, probablemente en el caso de las cerdas de hembras preñadas, enterradas bajo una cista de piedra, en la que se dispusieron posteriormente dos mandíbulas también de cerda, que se cubrieron con dos grandes piedras cúbicas. Podría tratarse de un ritual de fundación ofrecido a la divinidad representada en la piedra.

Pero los hallazgos de los arqueólogos también han tenido un componente esotérico. Y es que se ha constatado que la puerta sur del oppidum de Puente Tablas tiene una orientación al este, que coincide exactamente con la salida del sol en los equinoccios, momento en el que llega la luz por la puerta hasta la imagen de la divinidad. Para contrastar experimentalmente esta posibilidad, que está siendo asesorada por el doctor Manuel Pérez, de la Escuela Politécnica de Ávila (Universidad de Salamanca), el equipo arqueológico del CAAI ha levantado un dispositivo que recrea las sombras y luces de la puerta, reproduciéndose en cartón a escala 1:1 la imagen de la estela para constatar, desde su posición original, la recepción de las primeras luces de la mañana del sol durante los días en torno al equinoccio de primavera. “Esto sería indicativo de un rito de celebración a la divinidad, seguramente de fiesta, asociado a la fertilidad y a la agricultura”, apunta el profesor Manuel Molinos, subdirector del CAAI.

Los arqueólogos de este centro, con sede en la Universidad de Jaén, han explicado que este rito se reproduce en diversos puntos del Mediterráneo, en países como Italia o Grecia, y dentro de la península en la propia provincia de Jaén, en el santuario ibero de Castellar, así como en Oriente Próximo, “porque no hay que olvidar la relación existente con los íberos a través del mundo fenicio”, precisa Ruiz.

Este descubrimiento se complementa con otro reciente de una inscripción en el santuario ibero de las Atalayuelas en Fuerte del Rey, dedicada a una divinidad denominada Betato o Betatus. “Se puede tratar de una diosa femenina, con ofrendas como la de Puente Tablas, con el santuario también en la misma fortificación, por lo que muy posiblemente estemos ante la misma divinidad y empecemos a conocer el mundo de la religión ibérica, que hasta ahora nos era desconocido tanto en nombre de dioses, como en ritos dedicados a ellos”, expone Arturo Ruiz.

Esta segunda fase ha permitido excavar un corredor monumental construido con mampostería de piedra, enmarcado entre dos muros, que en algún punto alcanzan los dos metros de altura, y tiene un recorrido de 15 metros y un ancho de 3,5 metros. En los próximos meses se acometerá la fase de restauración, con el alzado de las dos torres de la puerta, que se desarrollará bajo la dirección del arquitecto Pedro Salmerón Escobar.

Autor: Ginés Donaire


Pedro Andrés Porras Arboledas

Direitos da personalidade: delimitação do tema e denominação

O ser humano, em suas relações com os demais indivíduos, desfruta de vários direitos que lhe garantem a defesa de valores básicos, reconhecidos por sua própria condição de pessoa humana tomada em si mesma (direitos individuais) e em suas projeções na sociedade (direitos sociais). São estes, os direitos da personalidade.

Admitem-se neste caminho direitos físicos, psíquicos e morais, que por sua vez protegem, respectivamente, os aspectos externos e internos da personalidade humana e sua projeção na sociedade, sob os aspectos individuais e sociais. São direitos reconhecidos em defesa de valores inatos ao homem, como a vida, a liberdade, a integridade física, a honra, a intimidade, entre outros.

Embora hodiernamente consagrados pela lei, doutrina e jurisprudência, seu progresso foi conquistado a duras penas, inçado por dificuldades de caráter ideológico, chegando determinados autores a negar-lhes mesmo a existência, com base na ideia de que, havendo direitos do homem sobre a própria pessoa, justificar-se-ia o suicídio.

Rubens Limongi França (1999, p. 936) critica o “extremismo em que descambam”, pois esta afirmação importa em “fazer tábua rasa da própria finalidade do Direito” que existe para permitir à pessoa “seja aquinhoada segundo a justiça com os bens necessários à consecução dos seus fins naturais. Ora, o extermínio da vida pelo suicídio é a própria negação disso, é a coarctação da causa final do Direito.”

Sua própria denominação é também polêmica. A expressão bens essenciais da personalidade é defendida e utilizada pelos doutrinadores jurídicos, às vezes, precariamente, mas reconhecendo, na sua maioria, a expressão direitos da personalidade, em nível nacional[1] e internacional[2]. O Código Civil espanhol somente alude a esta denominação no art. 162[3], reformado pela Lei de 13 de maio de 1981. É a partir da Lei nº 1 de 5 de maio de 1982, a qual dedicará uma detalhada explicação posteriormente, donde se alude expressamente em seu preâmbulo aos “direitos da personalidade”.

No Brasil, a relevância dos direitos da personalidade alcança tamanho grau que os levam à proteção constitucional, como se pode constatar no art. 5oda Constituição da República Federativa brasileira de 1988:

Art. 5o[...]
III. ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante;
IV. é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
VI. é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias;
X. são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
XII. é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;
XV. é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens;
XVI. é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar;
XLIX. é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral;
LIV. ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
LXV. a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária [...]

Além disto, a questão fustiga a polêmica em torno dos artigos constantes do Capítulo I: Da Personalidade e da Capacidade, acoplado ao Título I: Das Pessoas Naturais, do Livro I: Das Pessoas, do Novo Código Civil brasileiro. O art. 2º do Código Civil, ao anunciar que a personalidade, a pessoa, começa com o nascimento com vida, assegura os direitos do nascituro desde a concepção. Entretanto, conforme a elaboração doutrinal e jurisprudencial posterior, foi-se acentuando a ideia do reconhecimento e proteção de certos atributos jurídicos inerentes ao homem, chamados direitos da personalidade em sentido estrito, próprios à pessoa natural, com extensão aos nascituros.[4]


[1] Veja-se, por todos: DINIZ, 2002, v. 1, p. 117-136; GOMES, 2000, p. 141-164; MONTEIRO, 2003, v. 1, p. 96-99; RODRIGUES, 2002, v. 1, p. 61-75; PEREIRA, 2000, v. I, p. 141-160.
[2] Veja-se, por todos: DE CUPIS, 1961. 337 p.;BORDA, 1976, p. 175-178; LACRUZ BERDEJO, 2000, v. 2, p. 35-36.
[3] O art. 162 do Código Civil espanhol, no que se refere ao tema em discussão, dispõe: “Los padres que ostenten la patria potestad tienen la representación legal de sus hijos menores no emancipados. Se exceptúan: 1º. Los actos relativos a derechos de la personalidad u otros que el hijo, de acuerdo con las Leyes y con sus condiciones de madurez, pueda realizar por sí mismo”.
[4] O juiz do Segundo Tribunal de Alçada Cível de São Paulo, Euclides de Oliveira estende ao nascituro a aplicação dos direitos da personalidade (OLIVEIRA, 1998, p. 30-31). Também: ALMEIDA, 1983. 370 p.

Introdução aos direitos da personalidade

Introdução aos Direitos da Personalidade

A noção de direitos da personalidade é muito recente. Por serem ignorados completamente no Código de 1916 – e isso se explica porque àquela época os direitos da personalidade não compunham uma categoria autônoma de direitos, sendo apenas analisados como efeitos da personalidade, distantes de merecer uma tutela específica -, recaiu sobre o legislador constitucional a necessidade de listá-los no art. 5º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Deve-se reconhecer, a obsolescência do Código de Clovis Bevilaqua provocou uma abordagem de jaez civilista no âmbito da Constituição de 1988, originando o interessante fenômeno da publicização do direito civil ou constitucionalização do direito civil.
Neste palco, o Curso de Mestrado e Doutorado em Direito Civil, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), incluiu no seu currículo uma nova disciplina denominada Direito Civil Constitucional, para tratar de todas as questões do Direito Civil inseridas no corpo constitucional.
Somente em 2002 a Lei Civil nacional resgata a irredimível lacuna do diploma anterior, inserindo no Capítulo 2º deste diploma, um capítulo destinado aos direitos da personalidade. Embora não seja completo o rol dos direitos da personalidade - porque impossível fazê-lo - as novas diretrizes constituem-se, pode-se dizer, nas mais relevantes do novo Código Civil, merecendo os aplausos de toda a comunidade jurídica do país.
Logo no capítulo 2º, a partir do art. 11 até o art. 21, são nomeados os mais importantes direitos da personalidade. Importantes, pois são aqueles de maior influência na preservação da dignidade da pessoa humana. Para além disso, engenha o legislador a proteção desses direitos, através de uma tutela inibitória repressiva. Isso significa dizer que qualquer pessoa sob o justo receio de iminente violação de um dos seus direitos da personalidade, poderá invocar a tutela jurisdicional com vistas à sua inibição. Não mais é necessário esperar que seja efetivada a violação do direito da personalidade para, só então, ir a juízo chamar a tutela. Mas, ocorrida a violação, pela tutela repressiva pede-se a restauração do direito da personalidade desrespeitado. Este é, realmente, um avanço ético sem precedentes em solo brasileiro.
Mas, alcançado este ponto, pergunta-se: a fundamentação para a tutela concedida pela ordem jurídica nacional aos direitos da personalidade se assenta no fato de ser o princípio da dignidade da pessoa humana alicerce do Estado Democrático de Direito? São os direitos da personalidade que conferem às pessoas humanas essa dignidade?
Sendo a pessoa humana titular dos direitos da personalidade- preciosos arautos da dignidade que lhe é inerente, necessário explicar o seu significado.

Conceito de pessoa
De origem etimológica incerta, o termo pessoa vem de persona e parece ter nascido ligado ao teatro grego, com o significado de máscara (larva histrionalis) vestida pelos atores nas apresentações teatrais e religiosas. Utilizada como sinônimo de personagem, pressupõe aquilo que desempenha um papel, uma função própria.
Com os olhos voltados a esta nascente, Danilo Doneda, em aprazível construção teórica, atualiza o conceito de pessoa humana: “A pessoa seria a representação jurídica de cada homem, porém a posição central assumida pelo próprio homem no ordenamento o traz, em toda sua realidade e complexidade, para o epicentro do ordenamento, que a ele deve adaptar-se e não o contrário - e a máscara cai.”[1]
A partir daí, pode-se formular ser pessoa o sujeito de direito, portador de um dom que lhe possibilitará tornar-se titular de qualquer situação de direito ou dever jurídico. A personalidade, por sua vez, como qualidade da pessoa, constitui-se na aptidão reconhecida pela lei para tornar-se sujeito de direitos e deveres. Como pressuposto da concreta titularidade das relações, a personalidade corresponde à capacidade jurídica. A sutil distinção entre os dois conceitos está em que a personalidade é a abstrata idoneidade de tornar-se titular de relações, enquanto a capacidade jurídica é a medida de tal idoneidade que define os contornos da personalidade.[2]

Personalidade e capacidade
Críticas são formuladas sobre a determinação do significado dos vocábulos personalidade e capacidade, resultantes da confusão entre as duas perspectivas consideradas, e, relevante é o esclarecimento de San Tiago Dantas, do qual não se pode deixar de compartilhar, pela importância ao desvendar a questão:
[...] a palavra personalidade está tomada, aí, em dois sentidos diferentes. Quando se fala em direitos de personalidade, não se está identificando aí a personalidade como a capacidade de ter direitos e contrair obrigações; estamos então considerando a personalidade como um fato natural, como um conjunto de atributos inerentes à condição humana; estamos pensando num homem vivo e, não, nesse atributo especial do homem vivo, que é a capacidade jurídica, em outras ocasiões identificada como a personalidade.[3]

Sendo a personalidade um atributo da pessoa humana, que lhe permite adquirir direitos e obrigações na vida social, não se pode mortificar Hans Kelsen por tê-la vislumbrado como simples conseqüência jurídico-normativa. Eis seu pensamento: [...] A chamada pessoa física não é [...] um indivíduo, mas a unidade personificada das normas jurídicas que obrigam e conferem poderes a um e mesmo indivíduo. Não é uma realidade natural, mas uma construção jurídica criada pela ciência do Direito, um conceito auxiliar na descrição de fatos juridicamente relevantes.[4]

Do ponto de vista jurídico, a condição de pessoa é, portanto, uma criação do Direito.[5]O essencial do debate centra-se na essência dos inúmeros direitos que despontam no mundo atual, advindos da tão fantástica quanto assustadora evolução da ciência. Isso acarreta uma reinterpretação dos valores e, quando um ordenamento jurídico assume-os como essenciais, posicionando-os em palco destacado, sem, no entanto, desconectá-los dos demais direitos, exibe sua cumplicidade às mudanças assumidas pela morte dos códigos civis de inspiração liberal, produtos típicos do século XIX.


[1] DONEDA, Danilo. Os direitos da personalidade no código civil. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). A parte geral do novo código civil: estudos na perspectiva civil-constitucional. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 36.
[2] TRABUCCHI, Alberto. Instituciones de derecho civil. Tradução Luis Martínez-Calcerrada. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1967, p. 77 et seq. Para Caio Mário da Silva Pereira: “A idéia de personalidade está intimamente ligada à pessoa, pois exprime a aptidão genérica para adquirir direitos e contrair obrigações” (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: introdução ao direito civil: teoria geral do direito civil. 19. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2000, v. I, p. 141) e Maria Helena Diniz complementa: “[...] a personalidade tem sua medida na capacidade [...]” DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: teoria geral do direito civil. 18. ed. atual. de acordo com o novo Código Civil: (Lei n. 10.406, de 10-1-2002). São Paulo: Saraiva, 2002, v. 1, p. 138.
[3] SAN TIAGO DANTAS, Francisco. Programa de direito civil. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1977, v. 1, p. 192.
[4] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed. 4. tir. Tradução João Baptista Machado. São Paulo: M. Fontes, 2000, p. 194.
[5] Embora à consciência humana da era atual repugne a possibilidade da escravidão, não se pode olvidar tenha existido – enodoando a História da Humanidade - e que reside no comando jurídico das nações desenvolvidas a garantia da liberdade dos cidadãos.

O ensino jurídico: algumas reflexões


O ensino jurídico: algumas reflexões
Crônica publicada em:
MOTA, Sílvia. O ensino jurídico: algumas reflexões. Jornal da Adesa: associação de docentes da Estácio de Sá, Rio de Janeiro, ano 2, n. 15, p. 3, ago. 2003.


O curso jurídico nas instituições universitárias privadas vem sendo entendido tal qual maquinaria eletrônica acessada no sentido de possibilitar a abordagem das matérias essenciais dentro do tempo mínimo considerado suficiente. A metodologia de ensino padronizou-se na autonomização de um saber específico, no intuito de transmitir os conhecimentos fundamentais e instrumentais, desarticulados de matérias correlatas que possibilitam ao estudante transitar num universo intelectual mais amplo. Contudo, a burla do emprego dessa metodologia vem sendo constatada. O magistério essencialmente discursivo, sem a participação dos discentes, vem contribuindo para a formação de indivíduos cada vez mais desapaixonados. As informações tombam enxovalhadas, não lhes sendo cobrada a sedimentação do conhecimento exposto. Daí, a negligência e a formação de uma nova classe de consumidores, estranha, por sinal, pois que paga o preço máximo exigido para receber, se possível, o mínimo em troca. Os mestres interessados em reverter essa situação, compromissados com a educação e cientes da relevância da pesquisa na formação do pensamento jurídico, tornam-se alvo da repulsão e acossamento por parte daqueles alunos que foram adestrados a reproduzir sempre o que lhes é transmitido, palavra por palavra.

A Ciência do Direito, construída através da inquietude que extravasa da pessoa humana em relação aos seus próprios direitos, no afã de amansar as trilhas dogmáticas do Direito Positivo, passa a ser relegada ao esquecimento em favor do ranço que se consagra, nos cursos de graduação, ao estudo acrimonioso e acrítico da lei. Nesse contexto, inúmeros conceitos e institutos - briosamente articulados pelos sacerdotes jurídicos - muitas vezes ameaçam lacerar-se na ambiência atécnica das legislações.

A pesquisa jurídica, experiente, expõe vaidosa que a compreensão da matéria suscita, na realidade, uma coexistência de forças concorrentes com vistas ao fim determinado. Assim, professores e alunos carecem instigar a formação de um pensamento próprio e crítico a respeito dos conhecimentos que lhes são transmitidos.

Para o sucesso dessa epopeia é preciso que ambos esposem os princípios da metodologia científica, que informarão à Ciência Jurídica o necessário para fazer exsurgir no graduando a vivacidade de um espírito altaneiro, construtivo e inovador, encontrável apenas naqueles mestres que desafiam transmutar em louvores as dificuldades enfrentadas no magistério; naqueles advogados que degustam o sabor da vitória ao influxo das dificuldades, ao arriscar-se com galhardia na defesa de seus ideais; ou naqueles magistrados que, incansáveis no seu labor, não adormecem seus conhecimentos no leito amarrotado do que já foi desvendado, como se não mais reclamassem por atualização.

O que são cláusulas pétreas?

O QUE SÃO CLÁUSULAS PÉTREAS?
Arnóbio Felinto Júnior
 

Cláusulas pétreas são limitações materiais expressamente previstas no texto da Constituição Federal de 1988.

Alexandre de Moraes ressalta que o estabelecimento de matéria constitucional imutável, e, consequentemente, não sujeita ao exercício do Poder Constituinte Reformador: “[...] surgiu com a Constituição norte-americana de 1787, que previu a impossibilidade de alteração na representação paritária dos Estados-membros no Senado Federal.”[1]

As cláusulas pétreas constituem, nas palavras de Adriano Sant’Ana Pedra: "[...] um núcleo intangível que se presta a garantir a estabilidade da Constituição e conservá-la contra alterações que aniquilem o seu núcleo essencial, ou causem ruptura ou eliminação do próprio ordenamento constitucional, sendo a garantia da permanência da identidade da Constituição e dos seus princípios fundamentais. Com isso, assegura-se que as conquistas jurídicopolíticas essenciais não serão sacrificadas em época vindoura."[2]

José J. G. Canotilho lembra, ainda: “[...] as constituições selecionam um leque de matérias, consideradas como o cerne material da ordem constitucional, e furtam essas matérias à disponibilidade do poder de revisão.”[3] No mesmo refrão, Paulo e Alexandrino sustentam que: "As limitações materiais, como deflui de seu nome, excluem determinadas matérias ou conteúdos da possibilidade de abolição, visando a assegurar a integridade da Constituição, impedindo que eventuais reformas provoquem a destruição de sua unidade fundamental ou impliquem profunda mudança de sua identidade."[4]

Essa previsão de irreformabilidade está atualmente disciplinada no art. 60, §4º, da Constituição Federal de 1988, in verbis: § 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I - a forma federativa de Estado; II - o voto direto, secreto, universal e periódico; III - a separação dos Poderes; IV - os direitos e garantias individuais.


[1] MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 1131.
[2] PEDRA, Adriano Sant’Ana. Reflexões sobre a teoria das cláusulas pétreas. Revista de Informação
Legislativa, Brasília, DF, ano 43, n. 172, p. 137, out./dez. 2006. Disponível em:
a href="http://www.senado.gov.br/web/cegraf/ril/Pdf/pdf_172/R172-11.pdf%3E">http://www.senado.gov.br/web/cegraf/ril/Pdf/pdf_172/R172-11.pdf>;. Acesso em: 21 jan. 2009.
[3] CANOTILHO, José J. G. Direito constitucional. 6. ed. rev. Coimbra: Livraria Almedina, 1993, p. 1129.
[4] PAULO, Vicente; ALEXANDRINO, Marcelo. Direito constitucional descomplicado. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Impetus, 2008, p. 78.

Histórico da pena de morte

HISTÓRICO DA PENA DE MORTE
Arnóbio Felinto Júnior


Neste trabalho traça-se um breve histórico da pena de morte, com a intenção de verificar como foi o tema tratado no tempo e no espaço, desde o Egito Antigo até os dias de hoje. O estudo é relevante, tendo em vista que somente se pode entender o presente com o respaldo do passado.

1 ANTECEDENTES REMOTOS

No Egito Antigo, a organização social era baseada na hierarquia, destacando-se a figura do Faraó. A pena de morte era aplicada às pessoas que ofendessem a divindade e a pessoa do Faraó.

Na Babilônia, em momento posterior, existiram duas fases de suma importância: a da vigência do Código de Hammurabi, que estampou a punição daqueles que cometessem crimes intencionalmente e a da Legislação de Manu, pela qual crime se punia o furto. Por seu turno, os Hebreus atribuíam tal pena aos crimes contra os costumes e a religião, sendo a forma de execução mais comum o lapidamento.

A título de ilustração seguem as referidas legislações.

O Código de Hammurabi, através da Lei n. 1 estabelecia: “Se alguém acusa um outro, lhe imputa um sortilégio, mas não pode dar a prova disso, aquele que acusou, deverá ser morto.” Pela Lei n. 3: “Se alguém em um processo se apresenta como testemunha de acusação e, não prova o que disse, se o processo importa perda de vida, ele deverá ser morto.” Como se pode perceber, era muito perigoso na Babilônia jurar falso em frente de um juiz. Preceitua a Lei n. 6: “Se alguém furta bens do Deus ou da Corte deverá ser morto; e mais quem recebeu dele a coisa furtada também deverá ser morto.” Na Lei n. 11 se lê: “Se o proprietário do objeto perdido não apresenta um testemunho que o reconheça, ele é um malvado e caluniou; ele morrerá.” Mais adiante, a Lei n. 129 estabelece: “Se a esposa de alguém é encontrada em contato sexual com um outro, se deverá amarrá-los e lançá-los nágua, salvo se o marido perdoar à sua mulher e o rei ao seu escravo.” Em seguida, na Lei n. 130: “Se alguém viola a mulher que ainda não conheceu homem e vive na casa paterna e tem contato com ela e é surpreendido, este homem deverá ser morto, a mulher irá livre.”[1] Os estupradores, portanto, se arriscavam a perder a vida.

O Código de Manu, por sua vez, estabelecia na Lei n. 320: “Por haver tirado de homens de boa família, sobretudo mulheres e jóias de grande preço, como diamantes, o ladrão merece a pena capital.”[2]

Na Grécia, a pena de morte atingia, além do culpado, seu cônjuge e filhos. Essa aplicação destinava-se aos crimes contra o Estado e a religião. A execução realizava-se através do afogamento, fogueira, apedrejamento, entre outras formas.

Era comum que, ao aplicarem a pena de morte, os soberanos do Oriente dessem a impressão de agir como criminosos. Assurbanipal, rei da Assíria, que governou de 668 a 626 antes de Cristo, assim descreveu a execução de revoltosos:
Ergui um muro diante das grandes portas da cidade. Mandei esfolar os chefes da revolta e cobrir o muro com as suas peles. Uns foram enterrados vivos na construção, outros foram crucificados ou empalados ao longo do muro. De vários mandei arrancar a pele na minha presença e revestir este muro com ela. Mandei dispor as cabeças em forma de coroas, e os cadáveres trespassados em forma de grinaldas.[3]
No período Romano, aplicava-se a pena capital aos crimes de ordem pública e privada. Na fase de vigência da Lei das XII Tábuas, também chamada simplesmente Lex, ou ainda Legis XII Tabularum ou Lex Decenviralis, este assunto era tratado como coisa sacral e de ordem legal. Puniam-se os delitos praticados à noite, o pastor que invadia terreno alheio, o incendiário ou ainda o homicida comum e aquele que assassinava pai e mãe. A fogueira era pena que já nas XII Tábuas era aplicada ao incendiário que, depois de flagelado, era atado ou cravado a um poste ao qual se punha fogo com um montão de lenha colocado ao redor. Aos parricidas, se negava sepultamento. O condenado previamente açoitado tinha a sua cabeça coberta com uma pele de lobo; depois de calçado com sapatos de madeira era encerrado num saco de couro de vaca, juntamente com uma serpente e outros animais, e lançado às águas.
Seguem algumas leis da Tábua Sétima, Dos Delitos:

3. Aquele que fez encantamentos contra a colheita de outrem,

4. ou a colheu furtivamente à noite antes de amadurecer ou a cortou de madura, será sacrificado a Ceres;

6 Aquele que fizer pastar o seu rebanho em terreno alheio,

7 e o que intencionalmente incendiar uma casa ou um monte de trigo perto de uma casa, seja fustigado com varas e em seguida lançado ao fogo.;

17 Se alguém matar um homem livre e; empregar feitiçaria e veneno, que seja sacrificado com o último suplício;

18 Se alguém matar o pai ou a mãe, que se lhe envolva a cabeça e seja colocado em um saco costurado e lançado ao rio.[4]

Na fase imperial, devido à influência Cristã, a pena de morte foi decaindo e permitia-se a composição em seu lugar. Entre os Germanos, esse tipo de punição vigorava entre os escravos. Existia grande tendência à composição com multas pecuniárias. No Direito Canônico, predominou a proibição do seu uso devido à influência cristã, salvo alguns defensores. No inicio da Idade Média, a pena de morte foi utilizada, a princípio, devido ao aumento da criminalidade nas proximidades das cidades, onde constantemente ocorriam roubos de cargas.

2 INQUISIÇÃO

Com o início da Inquisição em 1232, lançaram-se editos de perseguição aos hereges na Europa. Chamada de Santo Ofício foi instituída como tribunal permanente da Igreja para investigar e combater heresias. A prática de queimar hereges em autos-da-fé foi introduzida nos últimos anos do século XII.

A esta época as punições aplicadas eram diversas: trabalho forçado, prisão perpétua, destruir a casa onde morava o suposto bruxo e mandá-lo para o confinamento em aldeias distantes. Também eram punidos os descendentes dos acusados de heresia, que eram proibidos de entrar em ordens religiosas, não tinham qualquer dignidade pública e não podiam exercer nenhuma função na sociedade, como por exemplo: médicos, tutores de jovens, cobradores de impostos, escrivães, advogados, farmacêuticos, entre outras. Não podiam ainda usar ouro, prata, seda, pedras preciosas, levar armas ou andar a cavalo.

A pena mais grave era o confisco de bens, que mantinha a Inquisição. A morte era reservada àqueles que se declaravam inocentes da acusação de heresia ou aos que se negavam confessar. Se um réu, antes da aplicação da pena de morte, pedisse para morrer nas leis de Cristo, acabava garroteado e depois queimado, ou então, era queimado vivo.

O referido Tribunal do Santo Ofício foi instaurado em 1236, pelo papa Gregório IX, que temendo as ambições político-religiosas do imperador Frederico II, tomou para si a responsabilidade de perseguir os hereges que começavam a incomodar o alicerce da Igreja Católica, bem como a estrutura dos estados monárquicos de então, que tinham como um dos pontos de unificação de seu território a religião predominante da época. Antes de se instaurar o Tribunal do Santo Ofício, propriamente dito, no início da Idade Média, a Igreja estruturou a sua justiça, limitando-se a uma justiça disciplinar. O seu procedimento era distinto da justiça comum da época, pois sua investigação era secreta e arrancar a confissão do réu constituía-se no âmago da questão. Esta justiça somente era aplicada ao clero. Entretanto, com o IV Concílio de Latrão, de 1216, através do papa Inocêncio III, firmou-se o metodo inquisitio.[5]

Nasce, então, no seio da Igreja católica, o Sistema Processual Inquisitório, onde a autoridade responsável dispõe de poderes para, por sua iniciativa, abrir o processo, colher as provas que julgar necessárias e proceder secretamente no interesse em obter a confissão do réu. É esse sistema processual inquisitório que lançará as diretrizes e norteará todo o funcionamento da Inquisição, através de seus atos, mandos e desmandos em nome de Deus.

2.1 O Tribunal de Deus

Para se instaurar um processo inquisitorial bastava uma denúncia ou uma acusação ao Santo Ofício, pois não adiantava fugir: o Santo Ofício via tudo, se infiltrava por toda parte, até no recesso dos lares. Obrigava os fiéis a se tornarem espiões e delatores e dessa maneira montava uma densa rede de informantes ocultos. Graças a isso, manteve perfeito controle social, exigiu comportamentos, impediu o livre arbítrio, sufocou dissidências.

Esse Tribunal tinha por base o Manual dos Inquisidores, escrito em 1376 por Nicolau Eymerich e Francisco de La Peña. O Manual continha todas as normas, leis e toda sorte de punição que se aplicava aos hereges. Estes eram o alvo principal do Santo Ofício e o Manual os classificava e definia como: os excomungados; os simoníacos (comercialização de bens da igreja); quem se opusesse à igreja de Roma e contestasse a autoridade que ela recebeu de Deus; quem cometesse erros na interpretação das Sagradas Escrituras; quem criasse uma nova seita ou aderisse a uma seita já existente; quem não aceitasse a doutrina romana no que se refere aos sacramentos; quem tivesse opinião diferente da igreja de Roma sobre um ou vários artigos de fé; quem duvidasse da fé cristã.

Instituído sob o caráter religioso, este Tribunal regulava e controlava toda vida cotidiana dos pensamentos dos cidadãos, assumindo uma importância extraordinária, tanto que não raras vezes ele julgou processos comuns que não diziam respeito à ordem eclesiástica, acusando os réus de hereges e submetendo-os aos rigores de suas normas.

Para se instaurar um processo inquisitorial bastava uma acusação, que devia ser registrada, ou uma denúncia anônima - que devia ser precedida de uma caridosa exortação; ou, ainda, por investigação, pela qual se averiguava as informações que chegavam ao Tribunal. Se o indivíduo se apresentasse como acusador, este deveria ser lembrado de que seria inscrito na Lei de Talião. Se, mesmo informado, o indivíduo se mantivesse como acusador, desenrolar-se-ia o processo a partir da acusação. Entretanto, se após receber a informação, o delator não quisesse mais assumir o papel do acusador e declarasse que queria apenas ser o denunciante, com sua identidade ocultada - o que ocorria com mais frequência - procedia-se ao processo pela denúncia. Havia, ainda, um terceiro tipo de instauração de processo, que se constituía no processo pela investigação, pelo qual o Tribunal deveria averiguar os boatos que chegavam aos seus ouvidos.

O processo preferido do Santo Ofício era o processo por delação, já que pelo processo de acusação, se o réu fosse inocentado, o tribunal teria de aplicar a Lei de Talião, punindo-se o acusador dificultando o surgimento de novos delatores, assim contribuindo para a impunidade dos crimes, em prejuízo do Estado.

Dando prosseguimento ao processo são inquiridas e interrogadas as testemunhas, no máximo duas, indo-se o interrogatório do acusado, até o inquisidor conseguir sua confissão, o que se constitui na pretensão máxima da inquisição, pois diante do tribunal da inquisição, basta a confissão do réu para condená-lo.

Embora se tenha a impressão de que no Tribunal do Santo Ofício só existia o lado do acusador, ou melhor, era o Estado contra um indivíduo, sem o direito de defesa, e de nenhum representante para defendê-lo, a verdade é que o Tribunal facultava ao réu formalmente, tal direito, por meio de um advogado, indicado pelo próprio Tribunal, devendo ser honesto, com experiência em direito civil e canônico, e bastante fervoroso. Na prática o advogado de defesa era um elemento decorativo no processo, pois quem o escolhia era o Tribunal, e seu compromisso não era com a defesa do Réu, mas com a obtenção da confissão e arrependimento deste.

Sobre o advogado dita o Manual dos Inquisidores:
[...] se o réu confessar, não há necessidade de um advogado para defendê-lo. Se não quiser confessar, receberá ordens de fazê-lo por três vezes. Depois se continuar negando, o inquisidor lhe atribuirá, automaticamente, um advogado juramentado no seu tribunal. O réu comunicar-se-á com ele na presença do inquisidor. Quanto ao advogado, prestará juramento - e embora já seja juramentado - ao inquisidor de defender bem o réu e guardar segredo sobre tudo o que vir e ouvir. O papel do advogado é fazer o réu confessar logo e se arrepender, além de pedir a pena para o crime cometido.[6]
Deste modo, o réu, não tinha defesa e muito menos um advogado de defesa, pois este se postava do lado da inquisição e não do acusado. Se neste em quase todos os processos inquisitoriais não se a designar um advogado para o réu confessar, pois a confissão era arrancada deste nos interrogatórios, através da tortura.

O uso da tortura para se obter uma confissão foi permitido pelo papa Inocêncio IV em 1252, e “[...] era aplicada sempre que se suspeitasse de uma confissão ou quando era incongruente. Um testemunho era suficiente para justificar o envio para a câmara de tormento. Quanto mais débil a evidência do crime, mais severa era a tortura.[7]

Segundo o próprio Manual dos Inquisidores, a tortura deveria ser moderada, pois o papel do inquisidor não era o de carrasco. Todavia, com o passar do tempo a violência aplicada sob os auspícios do tribunal, tornou-se cada vez mais severa.

Terminada a sessão de tortura, seguia-se o julgamento do réu, a última etapa do processo, que antecedia o auto-de-fé. Os que eram condenados a penas leves - como cárcere e hábito penitencial perpétuo, bem como a flagelação - caminhavam com uma vela nas mãos. Na frente do cortejo seguiam os condenados à morte, entregues à justiça civil para serem queimados vivos. Salientamos aqui um aspecto interessante. Por ser um Tribunal eclesiástico o Santo Ofício não podia executar seus condenados, ou seja, aos olhos de Deus não era a Igreja quem executava, pois a esta cabia apenas julgar. A decisão de validar o julgamento cabia à justiça dos homens; e estes teriam acertos com o Todo Poderoso se não fizessem valer a determinação do tribunal inquisitorial.

Os condenados à morte tinham seus bens confiscados, pois o Tribunal necessitava manter-se e financiar gastos com os presos, como as tochas para acender as fogueiras e com o espetáculo promovido no auto-de-fé.

Havia dois tipos de autos-de-fé: os públicos e os privados. Estes se destinavam aos casos menos graves ou especiais (julgamentos de pessoas pertencentes à alta nobreza); aqueles eram enormes festas populares.

Dispendiosos, os autos públicos realizavam-se anualmente. Construíam-se estrados, utilizava-se mobiliária, decorações. Tinham longa duração, ou seja, duravam o dia todo e, às vezes, dependendo do número de réus estendiam-se até altas horas da noite, chegando mesmo até o dia seguinte. Com o passar do tempo, o caráter festivo e sua ostentação aumentaram, e eram convidados reis, infantes, toda a Corte para assistirem de camarote à execução e humilhação dos transgressores da sociedade. Durante essa festa, os acusados ouviam suas sentenças e os condenados à morte, depois da cerimônia, eram conduzidos ao queimador. Esta festividade iniciava-se com uma procissão dos réus, seguida de uma missa, na qual o teor do sermão era a essência de toda a cerimônia. Das aldeias mais distantes chegavam curiosos a todo momento, apinhando-se uns sobre os outros para ver melhor as roupas, toaletes, cabelos das condessas, das princesas, das nobres damas da corte. Depois de dadas as sentenças, o povo corria para o queimadeira, para ver como se salvavam as almas.

3 A REVOLUÇÃO FRANCESA

Revolução Francesa é o nome dado ao conjunto de acontecimentos que, entre 5 de maio de 1789 e 9 de novembro de 1799, alteraram o quadro político e social da França. Em causa estavam o Antigo Regime (Ancien Régime) e a autoridade do clero e da nobreza. Foi influenciada pelos ideais do Iluminismo e da Independência Americana (1776). Está entre as maiores revoluções da história da humanidade. Esta época é considerada como o acontecimento que deu início à Idade Contemporânea. Aboliu a servidão e os direitos feudais e proclamou os princípios universais de "Liberdade, Igualdade e Fraternidade" (Liberté, Egalité, Fraternité), frase de autoria de Jean-Jacques Rousseau.[8]

O processo de Maria Antonieta, rainha da França deposta pela revolução, ao contrário de um processo inquisitorial precisava de provas para ser iniciado, ou seja, não bastava mais uma denúncia ou uma acusação; necessitava-se de algo concreto, material, um documento que a incriminasse.

Durante sua vida, Maria Antonieta queimou todas as cartas, decretos, bilhetes e toda sorte de documento que a comprometesse às vésperas da revolução. Portanto, como nobre deposta ao Tribunal só cabia o direito de mantê-la sob cárcere. A princípio foi encarcerada no Palácio dos Templários - O Templo, como era conhecido, junto com Luís XVI, seu marido, seus filhos e sua cunhada.

Com a morte de seu marido, guilhotinado sob a acusação de traidor da França, sua vida foi dedicar-se a seu filho Delfim. Sua alegria naquele cárcere era viver para este filho que ela amava e dedicava toda a sua alma. Entretanto, sua vontade de viver foi-se minando a partir do momento que o Tribunal decidiu, por falta de provas para incriminá-la, tirar seu filho de sua custódia. A partir de então essa mãe ficou desolada. Durante o curto período que permaneceu no Templo, consolava-se vendo o filho, secretamente, passear pelo jardim do castelo. Mas a revolução não a poupou, transferindo-a para Conciergerie, que “era o cárcere escolhido para os mais perigosos criminosos políticos. A inscrição no registro de entrada correspondia, afinal a uma certidão de óbito.”[9] Todavia, diferente do que se imagina a convenção, não se pretendia concluir logo o processo de Maria Antonieta, mas sim mantê-la como refém para atingir a Áustria. Entretanto, a sua terra natal não estava nem um pouco interessada em sua sorte. E assim o processo se arrastava, pois o desinteresse da Áustria, bem como a falta de provas que incriminasse Maria Antonieta fazia com que o processo se demorasse cada vez mais. Diante disso dizia o comitê de salvação pública à convenção: “[...] por que razão se faz tanta cerimônia para julgar o tigre austríaco, e se procuram provas para condená-la, quando para fazer-lhe justiça, se devia triturá-la como se faz à carne dos pastéis, para pagar todo sangue que ela fez correr?”[10] Pelo que se vê a violência que iria nortear todo o período do Terror tem a sua origem na indignação do comitê diante da demora de se julgar uma traidora da Revolução.

Embora encarcerada em uma prisão de segurança máxima, Maria Antonieta conseguiu conquistar a simpatia de seus carcereiros, que tudo faziam para agradá-la e tornar menos terrível aqueles dias de extrema solidão. Diante da situação desesperadora da rainha eis que surge uma esperança, Rougeville, amigo de Maria Antonieta, tentou tirá-la do cárcere, livrando-a da prisão, mas “[...] a comuna e o comitê de salvação pública tinham já conseguido saber o nome de Rougeville e já a polícia andava procurando por toda Paris o homem que desejava salvar a rainha, mas, que, em vez disso, na realidade, lhe tinha apressado o fim.”[11] O que faltava para dar início ao seu processo, aconteceu. A partir de agora era questão de agilidade na busca por provas que lhe incriminasse, pois com a tentativa de fuga Maria Antonieta havia assinado sua sentença de morte.

Depois da tentativa frustrada de fuga, Maria Antonieta foi transferida para o extremo isolamento. Ninguém mais podia visitá-la, nem vê-la. Tinham-na submetido ao maior grau de isolamento, não lhe sendo dado nem mesmo o direito a ver a luz do sol. Quando, finalmente, foi chamada a comparecer ante o tribunal “[...] era uma mulher velha, de cabelos brancos, que saía de uma longa noite para tornar a ver a claridade do céu, coisa de que já se tinha esquecido.”[12]

Instaurado o Terror o Comitê não titubeou. Percebendo Maria Antonieta ainda no cárcere sem que lhe tivesse feito a devida justiça, decretou:
Uma mulher, vergonha da humanidade e do sexo, a viúva Capeto, deve expiar finalmente os seus crimes no patíbulo. Já se publica por toda a parte que foi novamente transferida para o templo, que foi julgada e absolvida pelo tribunal revolucionário, como se uma mulher que fez derramar o sangue de tantos milhares de franceses pudesse vir a ser absolvida por um júri francês! Peço que o Tribunal Revolucionário se pronuncie esta semana em relação à sua sorte![13]
4 APÓS A REVOLUÇÃO FRANCESA

Um relato posterior à Revolução Francesa demonstra a preocupação da violência cometida nas penas capitais através do livro de Victor Hugo, O Último Dia de um Condenado à Morte. O prefácio, de 15 de março de 1832, mostra as práticas referentes a guilhotinamentos e a indignação do autor que defende a abolição da pena de morte, discutida até hoje.

Victor Hugo buscou as idéias para o livro na própria Praça da Grève, onde eram realizadas as execuções dos criminosos. Ouvindo o grito de uma sentença de morte e vendo a movimentação do povo, sedento de sangue, o autor presencia o ritual de preparo do condenado (cortar o cabelo, amarrar seu corpo). O sangue do condenado mancha a lâmina da guilhotina, levando-o a sentir-se na obrigação de contar tudo aquilo para a sociedade que estava insensível fazendo negócios, em meio à cena monstruosa.

No livro, o autor expressa sua indignação contra a pena de morte exemplificando um guilhotinamento que ocorreu no dia 12 de setembro de 1831, em Albi.  O executado era Pierre Hébrard e esta execução foi registrada na Gazettte des Tribunaux, jornal que serviu de fonte de pesquisa para Victor Hugo retirar os detalhes que enriqueceram o trecho do livro em que conta esta execução.

Segue a descrição:
[...] lá pelo fim de setembro, foram buscar o homem na prisão onde estava tranquilamente jogando cartas, notificam-no que ele tem que morrer dentro de duas horas, com o que ele começa tremer da cabeça aos pés, pois, depois de seis meses no mais completo esquecimento, já não contava mais com a morte; raspam-no, tosam-no, amarram-no, confessam-no; após o que jogam-no num carrinho de mão entre quatro gendarmes e, passando pela multidão, levam-no ao lugar da execução. Até aqui, tudo muito simples. É assim que acontece. Chegando no cadafalso, o carrasco toma-o do padre, leva-o, amarra-o no básculo, l’enfourne , aqui estou usando a gíria, e solta a lâmina. O pesado triângulo de ferro desprende-se com dificuldade, cai aos solavancos entre os trilhos, e aqui começa o horrível, corta o homem sem matá-lo. O homem dá um grito medonho. Desconcertado o carrasco puxa a lâmina e solta-a novamente. A lâmina entalha o pescoço do paciente pela segunda vez mas não o separa do corpo. O paciente dá urros, a multidão também. O carrasco torna a levantar a lâmina, esperando sair-se melhor na terceira vez. Nada. O terceiro golpe faz jorrar um terceiro rio de sangue do pescoço do condenado, mas não trincha a cabeça. Para encurtar, a lâmina subiu e desceu cinco vezes, o condenado soltou urros sob o golpe e sacudiu a cabeça gritando, pedindo perdão! O povo indignado armou-se de pedras e pôs-se, na sua justiça, a apedrejar o miserável carrasco. O carrasco foge por baixo da guilhotina, lá agacha-se atrás dos cavalos dos gendarmes. Mas a história ainda não acabou. O suplicado, vendo-se sozinho no cadafalso, tinha se levantado da tábua e, em pé, pavoroso, o sangue escorrendo pelo corpo, segurando a cabeça parcialmente cortada que caía no seu ombro, pedia com gritos fracos que viesse soltá-lo. A multidão tomada pela piedade, estava a ponto de forçar os gendarmes e prestar ajuda ao coitado a quem tinham aplicado cinco vezes a pena de morte. É neste momento que um ajudante do carrasco, um jovem de vinte anos, sobe no cadafalso, pede para o paciente virar-se para que ele possa soltá-lo e, aproveitando-se da posição do moribundo que estava se entregando a ele sem desconfiar, pula nos ombros dele e começa a cortar o que restava de pescoço com não sei que faca de açougueiro. Isto aconteceu. Isto foi visto. Sim.[14]
Pelo que foi aqui exposto, percebe-se que os direitos dos homens eram bem pouco igualitários. Não se pode dizer que a guilhotina amenizou a violência, nem se pode negar o alto preço que a humanidade pagou, pois o que pretendia Dr. Guillotin ao amenizar o sofrimento do homem foi comprovado não ser tão eficiente. As discussões sobre os direitos dos homens e da pena de morte comprovam que a guilhotina não condenava só um indivíduo à morte, ao contrário, como todas as penas de morte o fazem, até hoje, condenam a família inteira e, por muitas vezes, castigando inocentes.

Embora os processos apresentados, até o momento, sejam de épocas e de contextos sociais diferentes, há aspectos e pontos em comum, bem como traços totalmente opostos.

O primeiro ponto que chama a atenção é a questão da instauração do processo. Enquanto no tribunal inquisitorial uma denúncia abre um processo; no tribunal revolucionário, o caráter é mais democrático, pois este necessitava de provas concretas para ser instaurado, bem como de testemunhas. Basta lembrar que as testemunhas são usadas no tribunal inquisitorial para acusar e complicar cada vez mais o réu perante o Santo Ofício, o que não ocorre no tribunal revolucionário. A defesa do réu também é um aspecto que se evidencia. Enquanto no Tribunal de Deus o advogado de defesa figura como algo que atrapalha e provoca lentidão no processo, exercendo sua função principal de fazer o réu confessar, no Tribunal Revolucionário não existe a pretensão máxima de se obter a confissão e o advogado de defesa é colocado como um elemento que denota democracia.

Entretanto, o que se pretende ressaltar é o fator violência, presente em ambos os Tribunais. No Tribunal do Santo Ofício apresenta-se através da tortura física, já no Tribunal Revolucionário a violência aparece através da tortura psicológica.

Segundo o que propõe Edwards Peters, a Revolução Francesa bem como o período correspondente ao Terror, não deixaram qualquer registro que mencionasse qualquer violência cometida sob tortura, pois, segundo o autor: “[...] nem a própria revolução inicial nem o terror deixam qualquer registro da tortura.”[15] Particularmente, discorda-se deta afirmação, pois não seria uma espécie de tortura psicológica o que fizeram à Maria Antonieta, tirando-lhe o filho que ela mais amava, de sua custódia? E depois, mais tarde, quando isolaram-na em cela pequena, estreita e escura, sem a luz do sol? E as doenças que acometeram Maria Antonieta, devido a este isolamento, no final de sua existência, como hemorragias e cegueira? Essas indagações não são mencionadas quando se fala em Terror na Revolução Francesa, pois a própria guilhotina, instrumento tão usado neste período, foi criada justamente para amenizar o sofrimento das pessoas que seriam submetidas à morte.

A última questão é o caráter festivo com o qual essas atrocidades são encaradas pelo povo. No Tribunal de Deus, vê-se a ansiedade do povo pelos autos-de-fé, realizados anualmente e com um caráter de grande festividade, pois “[...] o povo levava quitutes como para um piquenique.”[16] No que diz respeito ao Terror Revolucionário encontra-se descrição do povo aguardando a pessoa a ser guilhotinada como se aguarda um grande ator para encenar um espetáculo deslumbrante, no qual o final é trágico. Mas o povo assiste, aplaude e retorna no dia seguinte para assistir de camarote o espetáculo, que deixa registrado na história a cor púrpura e a violência cometida em nome dos ideais de igualdade.

5 DO SÉCULO XVII AO SÉCULO XIX

A festa da punição extinguiu-se gradativamente no fim do século XVII. A execução pública passou a ser vista como uma fornalha, acendendo fervorosamente a violência. A morte foi sendo reduzida a acontecimentos instantâneos. A punição foi deixando de ser uma cena, e tudo que implicasse em espetáculo tinha um cunho negativo. Já não se admitiam aqueles processos longos, em que a morte calcava-se por uma série de movimentos sucessivos. Foucaut escreve:
Enquanto era feita a leitura da sentença de condenação, estava de pé no cadafalso sustentado pelos carrascos. Era horrível aquele espetáculo [...] E sob aquelas vestes, misteriosas e lúgubres, a vida só continuava a manifestar-se através dos gritos horrorosos, que se extinguiram logo, sob o facão.[17]
Justamente, nesta fase, iniciou-se o questionamento da necessidade da pena. Relevância histórica foi dada ao trabalho de Beccaria, Dos Delitos e das Penas, no qual se afirma que se o homem não pode dispor de sua vida, muito menos pode consentir que outrem dela disponha. Os pensadores da época mostravam-se contrários à pena de morte. A Igreja Católica teve decisiva influência para o término desta punição haja vista que erigiu o preceito do bem comum e da reinserção social. A pena tinha incumbência de ser: útil tanto para o criminoso, como para a sociedade; digna, afastada da vingança e da crueldade; necessária  visando, antes de tudo, a paz social. A partir daí iniciou-se um processo legislativo contrário à instituição da pena capital, defendendo-se que ela poderia ser substituída por outras espécies como a pecuniária e a composição. Podemos citar como exemplos a Lei Bávara (nenhum crime é tão grave que a vida não possa ser concedida) e também a Lei Sálica (a possibilidade das sanções com penas pecuniárias).

Desta forma, a Sociedade ao fim do século XVIII, início do século XIX, estava imbuída nos novos pensamentos contrários à mencionada pena, influenciada, ainda, pelo período áureo da humanização regido pela égide da igualdade, fraternidade e liberdade como também pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e a Constituição Americana de 1776. Diante disso, a sociedade passou a admitir uma nova teoria da lei e do crime, uma nova justificação moral ou política do direito de punir e a abolição de antigas operanças. Foi nessa época que a Humanidade de todos os cantos do mundo clamava pela extinção da referida pena, pois esta não se adaptava mais à realidade cultural e ideológica da época em estudo.

6 ÉPOCA CONTEMPORÂNEA

Hoje, embora remanesça em algumas legislações a pena de morte, procura-se imprimir  maior rapidez ao ato da execução. Para os condenados à forca o tempo gasto entre a entrada do executor na cela e o momento decisivo é de nove a 12 segundos, sendo de 20 a 25 segundos nas prisões que não têm as celas junto às câmaras de execução.

Na morte pela guilhotina, desde a saída da cela da morte até o certificado do verdugo de sentença cumprida, se gastam dois minutos. A execução propriamente não toma mais de 20 segundos. A execução na cadeira elétrica, entre a saída da cela e a execução toma de dois a quatro minutos, conforme o Estado. Na execução por gás, o tempo para cumprir a sentença varia de 40 segundos até 11 minutos.[18]

A exposição desses dados leva à conclusão de que tem sido preocupação dos legisladores não apenas matar sem causar dor, mas também matar com rapidez. Por isto se afirma que a pena de morte não é modernamente acompanhada de sofrimento, o que, entretanto, não é unânime na doutrina escrita sobre o tema.


[1] CÓDIGO DE HAMURABI. Direitos Humanos na Internet, Natal. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/hamurabi.htm. Acesso em: 18 jun. 2009.
[2] MANUSRTI: Código de Manu. Direitos Humanos na Internet, Natal. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/manu2.htm. Acesso em: 18 jun. 2009.
[3] JORGE, Fernando. Pena de morte: sim ou não?: os crimes hediondos e a pena capital. São Paulo: Mercuryo, 1993, p. 53.
[4] LEI DAS XII TÁBUAS. Direitos Humanos na Internet, Natal. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/12tab.htm. Acesso em: 18 jun. 2009.
[5] ANTES da inquisição. Disponível em: http://www.cav-templarios.hpg.com.br/antes.htm. Acesso em: 20 jun. 2009.
[6] DIRECTORIUM Inquisitorum, o Manual dos Inquisidores. Disponível em: http://br.geocities.com/manualdosinquisidores/advogadodedefesa.html. Acesso em: 18 jun. 2009.
[7] NOVINSKY, Anita. A inquisição. São Paulo: Brasiliense, 1993, p. 60.
[8] REVOLUÇÃO Francesa. Wikipédia: a enciclopédia livre. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Revolu%C3%A7%C3%A3o_Francesa. Acesso em 21 jun. 2009.
[9] ZWEIG, Stefan. Maria Antonieta. Rio de Janeiro: Guanabara, 1951, p. 377.
[10] Ibidem, p. 378.
[11] Ibidem, p. 389.
[12] Ibidem, p. 390.
[13] Ibidem, p. 392.
[14] HUGO, Victor. O último dia de um condenado à morte. Rio de Janeiro: Newton Compton Brasil, 1995, p. 23.
[15] PETERS, Edward. Tortura. São Paulo: Ática, 1989, p. 119.
[16] NOVINSKY, Anita. A inquisição. São Paulo: Brasiliense, 1993, p. 68.
[17] FOULCAUT, Michel. Vigiar e punir. 14. ed. Petrópolis: Vozes, 1996.
[18] MOREIRA, Geber. A pena de morte nas legislações antigas e modernas. In: BONFIM, B. Calheiros (Org.). Pena de morte. Rio de Janeiro: Destaque, [s.d.], p. 146-147.