quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Relativização da liberdade humana

Síntese e adaptação de texto contido em:
MOTA, Sílvia. Responsabilidade civil decorrente das manipulações genéticas: novo paradigma jurídico ao fulgor do biodireito. Tese (Doutorado em Justiça e Sociedade)–Universidade Gama Filho, Rio de Janeiro, 2005 [Aprovada, por unanimidade, no Exame de Qualificação, realizado em 15 jun. 2005. Orientador: Professor Doutor Guilherme Calmon Nogueira da Gama. Membros da Banca Examinadora: Professor Doutor Ricardo Pereira Lira, Professor Doutor José Ribas Vieira e Professora Doutora Fernanda Duarte].
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No contexto social, a liberdade “é uma conquista” e se impõe ao homem como de sua responsabilidade. Essa ausência de princípios norteadores da ação destaca-se na passagem da obra "O Existencialismo é um Humanismo", no qual um jovem pergunta a Jean Paul Sartre se deve ir para a guerra ou cuidar da mãe. Responde o filósofo, não existir uma regra, um valor, um modelo, mesmo uma resposta correta ou um conselho exterior, a servir de parâmetro para a ação. Ensina ser de total responsabilidade do jovem esta opção, por ser livre na eleição dos seus próprios valores. Não existindo valores universais a lhe servirem de paradigma, cabe ao homem engendrar os próprios valores que nortearão suas ações na vida. E, por assim ser, não existem valores éticos universais para a vida humana, mas somente a construção real e individual dos valores.

Este pensamento leva à seguinte verificação: em Sartre, para atingir um fim/objetivo, é lícito usar de quaisquer meios?

As ações livres dos homens trilham a um fim determinado. Mas, na perspectiva sartriana, este objetivo está ameaçado pelo Outro, o qual, embora necessário, é também um mal. Coexistem, portanto, Eu e o Outro, duas liberdades que se afrontam e tentam mutuamente paralisar-se através do olhar. No meio social, o convívio Eu-Outro se constitui num embate pela supremacia da liberdade. Ao perceber-se inapto para uma identificação objetiva à consciência do Outro, será o homem conduzido a volver os olhos deliberadamente para o Outro. Por esta atitude avoca a própria liberdade, tentando ultrajar a liberdade do Outro. Dessa forma, o alvo do conflito será trazer a lume a luta de duas liberdades confrontadas enquanto liberdades. O Outro é um mal porque a sua liberdade demarca a liberdade própria do Eu e, mais ainda, é um mal indissociavelmente arraigado ao homem, pois o Outro faz parte do seu Eu, da sua consciência e da sua ação. Intentando satisfazer seus desejos e sua liberdade, o homem faz do Outro um meio, um mero objeto da sua livre ação. Mas, estabelece-se a recíproca e a liberdade do homem se desumaniza tornando-se um objeto do Outro e fazendo do Outro, igualmente, seu objeto. Impõe-se uma relação de senhor do Outro em relação ao homem, que passa a se sentir indefeso frente ao julgamento da consciência. O Outro é seu juiz e seu senhor. Não existe refúgio, pois em qualquer lugar o Outro se imporá, mesmo na sua solitude, porque o Outro está cristalizado no seu próprio cérebro.

Nas ações voluntárias dos homens, o Outro aparece como um Mal por impor limites à liberdade de ação humana e um Bem por constituir-se num meio para seus fins. Dessa forma, afirmar a liberdade implica na sobreposição ao Outro, transformando o homem num objeto da própria liberdade. Contudo, como assinala Jean Morange, a liberdade humana não é absoluta: “É banal afirmar que nenhuma liberdade pode ser limitada. Mesmo aos olhos dos liberais mais extremistas, a liberdade de cada um deve terminar onde começa a liberdade do outro.” O ser humano, no gozo de sua liberdade, pode decidir-se por um determinado projeto de vida. Mas, embora seja único e irrepetível, não se encontra exilado no mundo, fechado em si mesmo. O homem convive com os demais, é um ser coexistencial. Neste sentido, declara Carlos Fernández Sessarego: “A existência é coexistência.”

Sob um ponto de vista histórico, interessante trazer a famosa distinção de B. Constant entre a liberdade do mundo antigo e a liberdade dos tempos modernos, referindo-se a modelos de liberdade que respondem a conquistas de etapas históricas concretas e aplicáveis a diferentes tipos de convivência social; ou a diferenciação de Imannuel Kant a dois usos de liberdade: um negativo, incorporado à capacidade do ser humano de agir independentemente de quaisquer outras causas para além da sua própria vontade ou razão prática - a independência a respeito de um objeto desejado; outro positivo, referente ao poder causal da razão em se autodeterminar, permitindo-lhe agir autonomamente, apenas com bases racionais. Isto significa a determinação do livre arbítrio pela simples forma legisladora universal. Assim, ser livre é ser moralmente responsável. Segundo Imannuel Kant, vontade livre e vontade submetida às leis morais são uma e a mesma coisa. Dennis Lloyd traça também a distinção entre a liberdade positiva e a liberdade negativa, enlaçando a última à organização do modelo de sociedade de tal modo que, independente de todas as sujeições impostas à ação individual em relação à sociedade como um todo, subsiste uma esfera para a escolha e a iniciativa individuais, alargada em conformidade ao bem-estar público. A liberdade positiva, por outro lado, muito mais próxima de uma concepção espiritual, subentende alguma espécie de oportunidade máxima para a auto-realização de cada indivíduo, até que atinja sua plena capacidade como ser humano.

No rastro do exercício livre da vontade humana, não se pode olvidar, os fins não justificam os meios. Neste sentido alerta Imannuel Kant que: “[...] o homem – e, de uma maneira geral, todo o ser racional – existe como fim em si mesmo, e não apenas como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade.”

Esta divagação pelo mundo filosófico fixa alguns pontos fundamentais. A liberdade é a condição da existência humana; o homem é incondicionalmente livre, pode escolher livremente o que fazer. Não obstante, esta liberdade poderá limitar-se pelo medo, levando-o a abdicar de certas escolhas por receio à repressão religiosa, moral ou jurídica. Mas, a liberdade em si estará sempre presente e, sobrepondo-se ao medo, será executada. Por tal motivo - sendo um poder do homem - a liberdade sem freios arrisca-se a transformá-lo num asselvajado, o que importará na opressão dos fracos pelos fortes e na ausência de toda liberdade dos primeiros.

Na realidade, o nascedouro do conflito é a intolerância do homem frente ao exercício da sua própria liberdade. Daí a necessidade do estabelecimento de regras jurídicas para reger o desenvolvimento e a atuação do ser humano no corpo social.

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REFERÊNCIAS:

CONSTANT, B. De la libertad de los antigos comparada com la de los modernos: escritos políticos. Tradução M. L. Sánchez Mejía. Madrid: CEC, 1989.

FERNÁNDEZ SESSAREGO, Carlos. Libertad y genoma humano. In: EL DERECHO ante el Proyecto Genoma Humano. Tradução José Gerardo Abella. Bilbao: Fundación BBV Documenta, 1994. v. I.

KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Tradução Alex Marins. São Paulo: M. Claret, outono 2002.

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução Alex Marins. São Paulo: M. Claret, outono 2002.

LLOYD, Dennis. A ideia de lei. 2. ed. Tradução Álvaro Cabral. São Paulo: M. Fontes, 2000.

MACEDO, Ubiratan Borges de. A idéia de liberdade no século XIX: o caso brasileiro. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1997.

MORANGE, Jean. Droits de l’homme et libertés publiques. 3. ed. Paris: Presses Universitaires de France, 1995.

SARTRE, Jean Paul. O ser e o nada. Petrópolis: Vozes, 1999.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Plágio poético

A poesia é uma das sete artes clássicas, pela qual a linguagem humana é esculpida com fins estéticos. Poesia é arte - é etérea - confunde-se ao sentir do ser poeta. Não se escreve poesia. Sente-se a poesia. Sua expressão, falada ou escrita - a obra - é o poema. O artífice é o poeta. Sendo assim, não se realizam plágios de poesias, mas de poemas.

Adentrando, ainda que perfunctoriamente, no campo jurídico do tema em epígrafe, no Brasil, a Lei nº 9.610 de 1998, cognominada Lei dos Direitos Autorais, estabelece as diretrizes pertinentes à matéria.

Importante ressaltar que o direito autoral compreende um complexo de faculdades jurídicas cujo titular é todo criador de obra intelectual, no que pertine ao seu resguardo, transferência e reprodução. Nasce este direito no momento em que se exterioriza a ideação e independe de registro. Sua violação é capitulada como crime, pelo ordenamento jurídico nacional.

O artigo 5º do diploma legal, anteriormente referido, explicita no inciso VI, ser uma reprodução: “[...] a cópia de um ou vários exemplares de uma obra literária, artística ou científica ou de um fonograma, de qualquer forma tangível, incluindo qualquer armazenamento permanente ou temporário por meios eletrônicos ou qualquer outro meio de fixação que venha a ser desenvolvido [...]”; e, no inciso VII, caracteriza como contrafação: “[...] qualquer reprodução não autorizada.”

Teoricamente, define-se assim contrafação: “[...] a imitação fraudulenta de um produto industrial, de uma obra de arte ou de literatura; edição de um livro que tem voga, feita sem autorização do proprietário da obra, e em seu prejuízo” (AULETE, 2009). Semanticamente, a expressão associa-se à pirataria: “Ação criminosa que consiste na reprodução, uso ou venda de cópias não autorizadas de material protegido pelas leis do direito autoral” (AULETE, 2009). A palavra “pirataria” não é termo jurídico, mas popular.

O artigo 7º da Lei dos Direitos Autorais exara serem obras intelectuais protegidas: “[...] as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro [...].” No âmbito desta proteção especifica, entre outros, os textos de obras literárias, nos quais se insere o poema, objeto referenciado nas laudas aqui apresentadas.

É bom dizer que, por vezes, a prática de plágio é confundida com a de reprodução ou cópia desautorizada de uma determinada obra.

Nas páginas do Dicionário Michaelis (Disponível em: . Acesso em: 14 ago. 2009), plagiar assume os seguintes significados: “1. Cometer furto literário, apresentando como sua uma idéia ou obra, literária ou científica, de outrem. 2. Usar obra de outrem como fonte sem mencioná-la; 3. Imitar, servil ou fraudulentamente.”
No mesmo diapasão, o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (Disponível em: . Acesso em: 14 ago. 2009), apresenta as acepções: “1. Apresentar como da própria autoria (obra artística, científica etc. que pertence a outrem). 2. Fazer imitação de (trabalho alheio).”

A partir destes sentidos e levando-se em consideração as diversas nuanças sugeridas pelo tema, a literatura científica difere as modalidades de infração em usurpação e contrafação. Na usurpação, o infrator apodera-se da obra de terceiros, apresentando-a como sua, sonegando do legítimo criador a sua autoria; na contrafação, a obra não é meramente copiada e sim retocada de modo a se passar por obra nova, autônoma daquela que originou o plágio. O “disfarce” assinalado confere ao plágio um caráter ofensivo, ardiloso, porque o plagiador apodera-se do engenho da obra alheia, camuflando-a, para que exiba nova roupagem.

Uma das formas mais eficientes de minimizar a questão do plágio, sob as formas de usurpação e contrafação é denunciá-lo. Não apregoar um ato criminoso sob a alegação de que se está a oferecer publicidade gratuita ao criminoso é um pueril engano. Sendo assim, não mais se exibiriam, através da imprensa, fotos de assassinos, estupradores ou de políticos corruptos, entre outros. Os cidadãos que compõem o corpo social possuem o direito de conhecer tais criminosos, para deles se protegerem. Decisivamente, não se deve calar.

Deixando as questões jurídicas, salienta-se que incorrer no plágio, na arte poética, é um dos grandes absurdos cometidos pelos desavisados. Sendo o poema expressão do sentimento do poeta, cria-se deformidade, não poema. Impossível plagiar o sentimento que origina uma expressão poética! E, se ninguém mais perceber - porque impossível ter conhecimento de todos os poemas do mundo - saberá o plagiador ser aquele “poema” uma expressão da sua “incapacidade poetal”, como diria, talvez, o querido poeta Marcial Salaverry. Um monstro a aviltá-lo, constantemente: “Não és meu criador! Não és meu criador!..” Então, por que criar contra si mesmo tamanha ofensa? Bom seria que não ocorresse, mas, realizado o plágio, é razoável deletá-lo e recriar o sentimento que lhe povoa o espírito, através das próprias palavras. Honesto e original. Aliás, no mundo atual, triunfa o incomum, não a mesmice. Pelo desejo incontido de copiar o próximo em tudo é que referenciais éticos se perdem na contemporaneidade, em todas as áreas.

Beijos originais, só meus!
Sílvia Mota.
Cabo Frio, 14 de agosto de 2009 – 9:57hs.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Ações de Wrongful life e Wrongful birth

Síntese e adaptação de texto contido em:
MOTA, Sílvia. Responsabilidade civil decorrente das manipulações genéticas: novo paradigma jurídico ao fulgor do biodireito. Tese (Doutorado em Justiça e Sociedade)–Universidade Gama Filho, Rio de Janeiro, 2005. Em andamento. [Aprovada, por unanimidade, no Exame de Qualificação, realizado em 15 jun. 2005. Orientador: Professor Doutor Guilherme Calmon Nogueira da Gama. Membros da Banca Examinadora: Professor Doutor Ricardo Pereira Lira, Professor Doutor José Ribas Vieira e Professora Doutora Fernanda Duarte].
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O subtítulo em epígrafe traz ao mundo jurídico uma nova realidade fática como eventual fonte de responsabilidade civil, com escassa e não uniforme doutrina jurisprudencial a nível internacional, pois no âmbito do direito brasileiro a questão não foi ainda abordada, o que mais instiga a inquietação intelectual da autora.

O debate é conhecido em outras latitudes, por exemplo, nos Estados Unidos e na Europa, nos últimos tempos, e tudo faz supor que a progressiva solidez da consciência social da possibilidade de abortar, assim como o incremento das provas pré-natais, incrementem estas demandas de responsabilidade civil contra médicos e outras instituições. Por tal motivo e pela singularidade dos problemas dogmáticos plantados por este tipo de reclamações, parece oportuno abordar algumas destas questões.

Trata-se de uma tipologia de danos determinantes de possível responsabilidade civil do médico, decorrente de erro no diagnóstico pré-natal, por falta de realização ou defeituosa realização diagnóstica, arrolada à concepção e ao nascimento da pessoa. Não se descobre ou não se informa o risco de enfermidade congênita do ser humano concebido, resultando daí nascer um feto doente, portador de defeitos condizentes a tal moléstia, não dispondo a mulher da possibilidade de recorrer ao aborto dentro do prazo legalmente estabelecido.

Estas hipóteses proporcionam abertura às chamadas ações de wrongful birth e wrongful life, consideradas na jurisprudência norte-americana e cujas denominações, em inglês, se mantém nos distintos trabalhos e resoluções judiciais sobre o particular.

Na primeira, wrongful birth, os pais alegam que, ao não se haver detectado ou não se haver informado sobre a possibilidade da mãe conceber ou dar nascimento a um ser com enfermidades congênitas, se lhes privou da oportunidade de adotar uma decisão informada sobre procriar ou não, sobre dar ou não lugar ao nascimento. Na segunda, ação de wrongful life, o filho demandante argumenta que se não ocorresse o conselho médico inadequado, não haveria nascido para experimentar o sofrimento próprio da sua enfermidade.

Na ação de wrongful birth, a culpa do médico consiste em um erro que conduz ao nascimento do filho dos pais demandantes, e, na ação de wrongful life, o erro médico invocado é o de ter conduzido à vida o próprio filho enfermo demandante.

Com tais referências iniciais, nas ações de wrongful birth, os pais demandantes reclamam normalmente a indenização do dano consistente no prejuízo moral e econômico derivado de ter tido um filho portador de uma enfermidade congênita. O dano moral, nesses casos, será aquele constituído pela aflição, desgosto e encargo que leva consigo a existência de um filho afetado por uma doença irremediável e, de ordinário, muito penosa. O dano econômico, por sua vez, será determinado pela necessidade de fazer frente aos gastos e desembolsos especiais impostos pela mesma enfermidade, gastos estes adicionais aos exigidos pelo sustento de um filho sadio. Depois de algumas vacilações iniciais, os tribunais norte-americanos mostram-se propícios a admitir a demanda e condenar ao médico demandado o pagamento dos gastos extraordinários ocasionados pelo nascimento e a existência do filho enfermo, se bem tenham recorrido com freqüência ao argumento moderador da indenização consistente na valoração da paternidade. Trata-se de uma espécie de compensação entre o prejuízo patrimonial que o sustento do filho enfermo implica e a vantagem ou benefício que a existência do filho significa. Por outro lado, nas ações de wrongful life, o filho demandante solicita a condenação do médico para reparo dos danos consistentes: em primeiro lugar, pelo ato mesmo de nascer, pois alega teria sido melhor não haver nascido a viver naquelas condições; em segundo lugar, pelos danos econômicos acarretados pela vida enferma.

Investigações biomédicas com embriões humanos: utilitarismo ético?

Professora Sílvia M. L. Mota

Surge nos séculos XVIII e XIX, em decorrência do movimento positivista, a Teoria do Utilitarismo, entendido este como ética normativa. Formulou-se através da metodologia moral e social de Stuart Mill (Utilitanianism), Jeremy Bentham (The principles of morals and legislation) e, também, de Henry Sidgwick (The Method of ethics).

O princípio fundamental desta metodologia é anunciado pelo aforismo: fugir da dor e buscar o prazer – a felicidade. A ética utilitarista consiste na identificação do bom com o útil e se expressa no sentido de que a melhor ação é aquela que produz a maior felicidade para o maior número de pessoas, e pior é aquela que, de igual maneira, ocasiona a miséria.[1] Sendo assim, uma ação é moralmente benquista se aspira a busca da felicidade e inaceitável se tende a produzir a infelicidade. Para além da felicidade do agente da ação, considera-se, também, a felicidade de todos aqueles afetados. A felicidade individual concretiza-se quando revela a felicidade geral. Esta afirmação supõe um liame entre a utilidade individual e a utilidade pública, pressuposto do pensamento de James Mill, para quem cada um deseja a felicidade alheia porque esta se encontra intimamente associada à sua própria felicidade.

Mas, pergunta-se, logo de início: quando entra em cena a vida humana, deve-se considerar como critério da reflexão ética o bem individual de um ser humano ou o cálculo de probabilidade maior ou menor que tem um determinado ato ou norma de promover o maior bem abstrato?

Neste texto, a discussão se coloca nos contornos das investigações biomédicas com embriões humanos, a partir das quais se pretende contribuir para o bem-estar do maior número de pessoas. O perigo, iminente, é destituir de valor a vida do embrião, por si mesma, passando-se a tratá-la como um bem físico, nada mais. O conteúdo axiológico, na ética utilitarista, parece erigir-se unicamente na atitude do médico ou do cientista, quando imprimem às suas ações uma finalidade ou intenção, boa ou má. A vida do embrião se reduz à condição de meio adequado para alcançar um fim proposto, nestes casos, a cura de enfermidades ou investigação biomédica. Corre-se, portanto, o risco de lançar ao esquecimento a fórmula kantiniana do imperativo categórico: "Age de tal modo que uses a humanidade, ao mesmo tempo na tua pessoa e na pessoa de todos os outros, sempre e ao mesmo tempo como um fim, e nunca apenas como um meio”.

As pedras angulares que se digladiam nos campos da bioética e do biodireito, a favor da investigação com embriões humanos, fundam suas raízes neste utilitarismo ético, que lhes outorga um tratamento que os mantém mais ao lado da natureza relativa às coisas do que às pessoas. A partir deste espectro utilitarista da vida, a dignidade humana se queda notadamente ameaçada, pois a pesquisa biomédica deixa de ser um instrumento humano para melhora da qualidade e expectativa de vida dos embriões. A investigação científica, abalizada no cumprimento de diretrizes e apreciações externas à própria vida humana, repercute - fatal - na consideração do embrião, cuja vida se reinterpreta em termos de utilidade biológica: a vida de um indivíduo humano não tem valor per si, mas só enquanto relacionada a algo ou alguém. Desta forma, os interesses estranhos ao embrião preponderam frente à realidade humana ali assentada. Estes interesses suscitam investigações biomédicas fundadas num procedimento que norteia uma crescente ausência de proteção jurídica e estimula a coisificação da vida humana embrionária, deixando esta de ser limite ético e alicerce para uma adequada investigação biomédica com embriões humanos.

John Rawls, filósofo, dentro da tradição liberal resgata a discussão sobre o contrato social e repreende a tendência utilitarista por privilegiar a maximização dos benefícios - o que pode ser conveniente - mas injusto, porque alguns indivíduos são sacrificados em benefício de outros e não se pode ofender a inviolabilidade de cada pessoa considerada na sua individualidade, qualidade que não pode ser sacrificada nem mesmo em favor do bem-estar da sociedade. No mesmo átrio, expõe Heller que as necessidades dos seres humanos – todas – devem ser concretizadas, com exceção daquelas que, para a sua satisfação, exijam que um homem seja meio para outro homem. Para John Rawls, existe um equívoco quando se identifica o bem-estar social com as definições de bem, quando se deveria relacioná-lo ao que é justo. Essa posição é lançada, em razão do destaque social das ideias utilitaristas sobre a admissão de uma sociedade ordenada de acordo com a maximização do bem-estar dos cidadãos. Segundo o pensador, este pensamento contraria as noções básicas de Justiça, afrontando as liberdades de expressão, as liberdades políticas e a igualdade de oportunidades e de direitos. Assume o jusfilósofo o dito kantiano de que nenhum ser humano pode ser usado como meio para se alcançar um fim determinado, mesmo que seja este para beneficiar uma sociedade inteira. Neste passo, considera a dignidade moral das pessoas defendendo o princípio de que cada pessoa deve ser preservada na particularidade, e que é preciso “[...] respeitar as distinções entre as pessoas.”[2]

Deve-se salientar que a Teoria do Utilitarismo pode ser vislumbrada através de duas categorias: o de ato e o de norma. Sob o prisma do utilitarismo de ato, faz-se necessário deliberar quanto ao que é certo ou obrigatório por solicitação direta ao princípio de utilidade. Isso significa dizer que é necessário situar qual das possíveis ações produzirá, em termos, maior porção de bem presumível em relação ao mal. Ajuíza-se o efeito do ato numa determinada circunstância arrolando-o ao equilíbrio geral do bem em relação ao mal. Estas são as diretrizes éticas do momento: numa situação de conflito, sopesar os prós e contras da ação humana, no condizente ao resultado esperado. A partir do utilitarismo de norma valoram-se as regras na moral, salientando-se o quanto é relevante tomar uma atitude específica em função de uma regra e não inquirindo sobre qual atitude gerará consequências melhores numa determinada situação. As regras, aqui em relevo, devem promover o maior bem possível para o maior número possível de pessoas. A partir deste raciocínio, não há que se perguntar se determinada regra é certa ou errada, justa ou injusta, mas apenas se é legítima ou ilegítima. Sendo regra, estabelecida a partir do consenso social, deverá ser seguida. Desemboca-se, portanto, nas regras jurídicas, obrigatórias e sancionadoras da conduta humana; regras estas que exigem revisão constante, sendo a cada passo, substituídas, com base em sua finalidade. No Brasil, esta visão finalista do Direito revela suas raízes no art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro: “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.”

As atividades dos cientistas nas investigações biomédicas com embriões humanos acompanham as necessidades de oferecer uma melhor qualidade de vida ao grupo social, contudo seus atos devem expressar o aceite dos seres humanos envolvidos. Por tal razão, busca-se fundamento em Heller, quando afirma que o sistema de necessidades humanas deveria corresponder ao sistema de necessidades eleitas pelos humanos. Pode-se concluir desta afirmativa que a finalidade da ação humana é, essencialmente, também o padrão de moralidade (conjunto de regras e preceitos da conduta humana) cominado pela sociedade. Alcançado este ponto, não se deve olvidar que as relações travadas entre homem e sociedade não se encontram cristalizadas através dos tempos. Ao contrário, vivificam-se, a partir das aspirações e objetivos do grupo social.

Uma sociedade que se estribe nas marcas da Justiça é aquela na qual seus pilares - as instituições – busquem a efetivação do bem-estar social, com a participação de todos os sujeitos envolvidos. É necessário afirmar que em todas as relações, individuais ou coletivas, colocam-se momentos em que os sacrifícios devem ser aceitos em função de um bem maior. John Rawls corrobora ao aproveitar a ideia utilitarista: “[...] a sociedade está ordenada de forma correta e, portanto, justa, quando as instituições mais importantes estão planejadas de modo a conseguir o maior saldo líquido de satisfação obtido a partir da soma das participações individuais de todos os seus membros.”[3]

No rastro dessas orientações, afirma-se que a pesquisa com embriões humanos não afronta a dignidade humana, tendo em vista que seus resultados privilegiam não somente um indivíduo em particular, mas a sociedade como um todo, e, por essa razão, a aceitação geral inviabiliza a ofensa. Atender aos interesses da maioria é, também, uma forma de se fazer justiça. Cabe, entretanto, apreciação crucial das preferências, para que não se apresentem ofensivas, onerosas ou excessivamente modestas.[4]

Nesse contexto, cabe aos legisladores estabelecerem e aos magistrados efetivarem um Direito que - cumprindo o seu fim - concretize o anseio social. A máxima que divisa o ser humano como fim em si mesmo é imprescindível na criação, interpretação e aplicação das normas jurídicas, pois este enfoque servirá de referencial ao estabelecimento de um mínimo ético a ser considerado pelo Direito. Justifica-se, assim, o paradigma do Estado Democrático de Direito, através do qual quaisquer projetos relacionados à vida humana agregam-se, com fulcro numa ordem jurídica que se curva à majestade dos Direitos Fundamentais e, em especial, à imponência ético-jurídica do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.

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Notas

[1] Cesare Beccaria em sua obra clássica Dos Delitos e das Penas foi o primeiro a formular essa ideia, a seguir adotada por outros pensadores.

[2] RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: M. Fontes, 1997, §5, §§26-28, §30 e §54.

[3] RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: M. Fontes, 1997, p. 25.

[4] Preferências ofensivas são aquelas com forte apelo discriminatório, que envolvem desprezo por categorias ou grupos sociais, preconceitos religiosos ou raciais. Se tais preferências forem satisfeitas, as demais preferências serão tratadas de forma desigual. As preferências onerosas são as que fazem exigências excessivas aos recursos escassos. Um grupo pode ter desenvolvido o gosto por uma vida luxuosa e cara, e sentir-se-ia extremamente infeliz não usufruindo de tal vida, e enfim não é justo que alguns se privem de necessidades mais básicas para ver satisfeita tal exigência. E as preferências modestas são resultado da vivência em um meio social enfraquecido, assim, por não ter acesso a certas demandas socais fundamentais, como educação e saúde, as pessoas podem acreditar que não necessitam de mais do pouco que recebem. PELLIZZARO, Kerlly. A concepção de pessoa na teoria da justiça equitativa de J. Rawls. Dissertação apresentada à Coordenação do Curso de Pós-Graduação em Filosofia, Área de concentração em História da Filosofia Moderna e Contemporânea, Linha de Pesquisa: Ética e Política, turma 4 (2003/2005), Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, da Universidade Federal do Paraná, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Filosofia. Curitiba, 2006. Disponível em: http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/2010/artigos_teses/FILOSOFIA/Dissertacoes/kerlly.pdf. Acesso em: 11 maio 2009.

sábado, 9 de maio de 2009

Princípio de Justiça e Direito no mundo contemporâneo

Síntese e adaptação de texto contido em:
MOTA, Sílvia. Responsabilidade civil decorrente das manipulações genéticas: novo paradigma jurídico ao fulgor do biodireito. Tese (Doutorado em Justiça e Sociedade)–Universidade Gama Filho, Rio de Janeiro, 2005. Em andamento. [Aprovada, por unanimidade, no Exame de Qualificação, realizado em 15 jun. 2005. Orientador: Professor Doutor Guilherme Calmon Nogueira da Gama. Membros da Banca Examinadora: Professor Doutor Ricardo Pereira Lira, Professor Doutor José Ribas Vieira e Professora Doutora Fernanda Duarte].
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Introdução

Nenhum teórico, nenhum povo ou civilização possui um imarcescível e peremptório conceito de Justiça. Esta assertiva aproxima-se do pensamento grego, pois os sofistas ainda muito cedo haviam negado a existência de uma Justiça absoluta. Sócrates afirmara-a arrebatadora e dogmaticamente, curvando-se, a seguir, ao encargo de revelar ser inalcançável à sua reflexão aquele significado. Platão dispôs-se atingir essa verdade, mas pressagiou também ser o resultado desta busca, inexprimível. Desta forma, o vestíbulo no qual se desvendaria este conhecimento, culminou por contentar-se a presidir o culto a um misticismo religioso.
A idéia de Justiça dos ocidentais é herdada, em grande parte, das noções expostas inicialmente por Platão, Aristóteles e pelos juristas romanos. Em Platão, Justiça é a virtude suprema, sintonizadora das demais virtudes, sendo, portanto, a harmonia, sua nota basilar; Aristóteles faz a clássica distinção entre justiça distributiva e justiça comutativa em função dos critérios da proporção e da igualdade; e, neste contexto, é pertinente entrar em curso a velha colocação do jurista romano Ulpiano: Justitia est constans et perpetua voluntas jus suum cuique tribuendi significando: Justiça é a constante e perpétua vontade de atribuir a cada um o seu direito. Normalmente decifrada pelos múltiplos autores através das exigências da justiça distributiva, suscita esta definição ponderações em torno da dificuldade de distribuir precisamente os recursos disponíveis, limitados ou escassos, e provoca um grande busílis: o da afinidade entre Justiça e Direito.

Pelas dificuldades oferecidas, o Ocidente não se limitou a construir uma Teoria da Justiça, mas importou-se em encontrar o meio de realizá-la historicamente. Dessa forma, o Relatório Belmont, em 1978, articula ser o Princípio de Justiça uma questão de imparcialidade na distribuição dos riscos e dos benefícios. Mas desta assertiva surgem mais perguntas: quem é igual e quem não é igual, se os homens têm diferenças de todo tipo? Quais considerações justificam afastar-se da distribuição igualitária?

Pretende-se nas próximas laudas, conquanto perfunctoriamente, estudar os critérios apontados pelos estudiosos com vistas à resolução da distribuição dos bens, estabelecendo a viabilidade da sua aplicação no contexto do mundo contemporâneo, quando o Princípio de Justiça é enlaçado definitivamente ao direito que todos possuem de serem tratados igualmente.

A importância dessa discussão repousa na possibilidade de indicar nova interpretação aos aspectos então apresentados, reconhecendo o engano do discurso atual e, também, em demonstrar quais as atitudes tomadas pelos tribunais diante dos casos in concreto. A busca pela Justiça, por ser inerente à própria vida do ser humano, exsurge como conseqüência imediata da consagração da dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil.

As possíveis respostas serão formuladas com supedâneo na legislação, na literatura filosófico-jurídica e na jurisprudência fracionária, buscando-se a análise da atual amplitude dessa virtude humana suprema cognominada Justiça.

1 Localização da Justiça
A Teoria da Justiça é situada por Miguel Reale no âmbito da Axiologia[1], ramo do conhecimento cujo objeto é o estudo da noção de valor em geral. De sua raiz, abrolha o termo axiológico, significando império da Axiologia; com fulcro em valores intrínsecos ou essenciais, ou envolventes, fazendo as obrigações morais dependerem de valores.[2]

O termo Justiça é preocupação inflexível dos estudiosos das ciências humanas e sociais, e esta realidade leva o pesquisador a indagar se o estudo do Princípio de Justiça não deveria transcender os grilhões da Ética e impor-se ao campo do Direito.

Para dirimir tal contenda, procura-se fundamento nas palavras de Hans Kelsen, jusfilósofo, privilegiado cultor do refletir humano, por pretender exorcizar do interior da teoria jurídica a inquietação quanto aos conceitos de justo ou injusto. Segundo o artífice, o homem procura justificação absoluta para o seu próprio comportamento e, para tal, não lhe basta aceitá-lo apenas como meio adequado para um determinado fim. Para saciar esta necessidade, busca na religião ou na metafísica uma justificativa, imposta sob a denominação de justiça absoluta e desloca a justiça, deste mundo para um mundo transcendental, onde será concretizada por uma autoridade sobre-humana, divina, cujas características e funções são, por sua natureza, “inacessíveis à cognição humana”.[3] É, portanto, irracional, o ideal de justiça absoluta.

Para Hans Kelsen, todas as reflexões aptas a propiciar o debate sobre valores possui um campo delimitado: a Ética, ciência comprometida com o estudo não das normas jurídicas, mas das normas morais, estas às quais compete a missão de detectar o certo e o errado, o justo e o injusto. Inúmeras são as formas com as quais se concebem o justo e o injusto, levando este estudo a investigações inconclusivas. Por tal razão, deflagra o autor, a interpretação das leis deve ser objetiva.[4]

Com inspiração ressaltante no pensamento kelseniano, implanta-se o Princípio de Justiça nos domínios da Ética.

2 A Justiça é absoluta?

Os favoráveis à ala jusnaturalista respondem: sim, a Justiça é absoluta. A medida do justo deriva do Direito Natural. Desde que o mundo é mundo, sempre se praticam guerras e morticínios em nome dessa virtude e todos os praticantes desses atos declararam permanecer a Justiça do seu lado. Aos adeptos da linha positivista, a Justiça não é absoluta, por ser algo subjetivo e as medidas do justo serem mutáveis de grupo para grupo e mesmo de pessoa para pessoa.

É a justiça absoluta um ideal bruto e desconexo da realidade, simplesmente um pulcro devaneio da humanidade.

3 Classificação da Justiça

Com ímpetos de facilitar o estudo, proferem-se os tipos de Justiça apontados pelos estudiosos do tema.

Aristóteles faz a clássica distinção entre justiça comutativa e justiça distributiva. A justiça comutativa, com base no princípio de igualdade, preside as relações entre os indivíduos, equilibrando-as e tornando justas as trocas entre as pessoas. Não se abrevia ao restrito campo dos contratos, estendendo-se aos demais arrolamentos entre particulares. O devido a cada um lhe é próprio pelo simples fato de ser pessoa humana, como acontece com o direito à vida, o direito à indenização por perdas e danos, entre outros; e o tratamento igual será viável, se computada a necessária equivalência entre duas coisas.[5] A justiça distributiva preside as relações entre o grupo social e seus membros, suscitando inúmeros ajuizamentos em torno do referido problema de distribuição justa dos recursos disponíveis, limitados ou escassos. Deve-se fazê-lo pelo critério da proporcionalidade, distribuindo os bens correspondentes ao mérito e às necessidades de cada um. Sendo assim, dependeria em primeiro lugar do Estado, a quem compete distribuir bens e honras, levando em conta o mérito de cada um. Mas, pode ser também incumbência de uma pessoa privada: chefe de um grupo social, pai ou mãe de família, administrador de uma sociedade comercial ou industrial.[6]

São Tomás de Aquino sobrepôs à classificação anterior, a justiça geral ou legal, enfatizando o débito de cada um ao grupo social, sendo o imposto de renda exemplo desse critério.

Na Era Contemporânea, a justiça social, reclamo da sociedade, obedece à igualdade proporcional na repartição dos bens e procura assistir aos pobres e desamparados segundo suas necessidades essenciais, mediante a adoção de critérios que patrocinem uma distribuição mais balanceada da riqueza. Este anseio pela justiça social leva alguns autores, como F. A. Von Hayek, a exporem seu pessimismo quanto à sua concretização e banalização.[7] Em realidade, o apelo à justiça social tornou-se corrupto, vinculando-se a reivindicações que pretendem abonar como morais determinadas atitudes fulcradas em ideologias políticas e religiosas, distanciando-se da exigência inicial de que numa sociedade pretensamente livre todos devem ser tratados igualmente pela norma jurídica.

4 Critérios de exteriorização da Justiça e do Direito no mundo contemporâneo

Difícil, senão impossível, no mundo atual, dar a cada um o seu direito, como pretendia Ulpiano, quando se trata de distribuir os bens, tão escassos em relação aos indíviduos que os disputam. O que é o direito de cada um? O que é o justo para cada um? A literatura filosófico-jurídica traça alguns critérios, a partir deste ponto, aqui indicados.

O Princípio de Justiça é intrerpretado por Tom L. Beauchamp e James F. Childress através das exigências da justiça distributiva. Uma distribuição justa, eqüitativa e apropriada na sociedade justifica as normas estruturadoras da cooperação social.[8]

William K. Frankena, por seu lado, acirra o debate e pergunta quais são os critérios ou princípios de justiça a serem levados em conta no momento da distribuição dos bens. Para o autor, a justiça distributiva liga-se a um tratamento comparativo de indivíduos:

[...] Estamos falando de justiça distributiva, justiça na distribuição do bem e do mal [...] A justiça distributiva é uma questão de tratamento comparativo de indivíduos. Teríamos o padrão de injustiça, se ele existe, num caso em que havendo dois indivíduos semelhantes, em condições semelhantes, o tratamento dado a um fosse pior ou melhor do que o dado ao outro [...] O problema por solucionar é saber quais as regras de distribuição ou de tratamento comparativo em que devemos apoiar nosso agir. Numerosos critérios foram propostos, tais como: a) a justiça considera, nas pessoas, as virtudes ou méritos; b) a justiça trata os seres humanos como iguais, no sentido de distribuir igualmente entre eles, o bem e o mal, exceto, talvez, nos casos de punição; c) trata as pessoas de acordo com suas necessidades, suas capacidades ou tomando em consideração tanto umas quanto outras.[9]

A obra de John Rawls concebe a Justiça como Eqüidade (Justiça ao caso em concreto) e reinterpreta o pensamento aristotélico baseando-se nos princípios da liberdade e da diferença. O primeiro refere-se à justiça comutativa e foi assim erigido: “Cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para as outras.”[10] De acordo com esse princípio, cada pessoa deve ter a mais ampla e extensa liberdade possível, mantendo-se, entretanto, compatível com uma liberdade similar de outros indivíduos. O segundo evidencia respeito à justiça distributiva e se expressa da seguinte forma: “As desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo: (a) consideradas como vantajosas para todos dentro dos limites do razoável, e (b) vinculadas a posições e cargos acessíveis a todos.”[11]

O primeiro princípio afiança as liberdades básicas e anuncia a preferência pela liberdade, excepcionalmente estremada a serviço da própria liberdade. O segundo princípio se consagra à distribuição de renda e riqueza ou oportunidades, constituindo-se na prioridade da Justiça frente à eficiência do bem-estar. Procura John Rawls associar Justiça com Liberdade e Justiça com Desigualdade.[12] Sendo princípios autônomos, não se pode proteger um em detrimento do outro. Veta, portanto, a troca de liberdades por ganhos econômicos e, do mesmo modo, inadmite seja imolada a liberdade, a não ser, repete-se, para gerar mais liberdade. Advoga uma igualdade democrática constituída pela eqüitativa igualdade de oportunidade e a existência de desigualdade.[13] Daí a acepção de Justiça como Eqüidade. A igualdade de condições no acesso às oportunidades deverá ser outorgada a todos, sabendo-se, todavia, o resultado será sempre desigual. A desigualdade será admissível como justa exclusivamente quando originar prerrogativas para todos, a dar início pelos mais carentes.[14]

Alf Ross dedica-se também ao exame da idéia de Justiça como exigência de igualdade. Considerando-se a igualdade um princípio absoluto, quaisquer sejam as circunstâncias, deveriam encontrar-se todos os indivíduos na mesma posição. No entanto, confere o autor, isto é utópico, porque as diferenças reais existem e não podem ficar à margem da consciência do julgador.[15] E, neste refrão, apresenta e explica seu esquema[16], inspirado nas diretrizes do Relatório Belmont[17]:

a) a cada um segundo seu mérito: diz respeito aos méritos morais ou o valor moral de uma pessoa. Liga-se este critério à idéia de Justiça nesta vida ou após a morte, relacionando proporcionalmente mérito e destino;

b) a cada um segundo sua contribuição: o padrão de avaliação é aqui a contribuição de cada pessoa à economia social. Sua interpretação remete ao intercâmbio de cumprimentos entre a pessoa e a comunidade. É utilizado também pelos teóricos, os quais, sobre bases individualistas concebem o trabalho e a remuneração como um intercâmbio de cumprimentos entre particulares[18];

c) a cada um segundo suas necessidades: cada um deverá contribuir de acordo com sua capacidade e receber de acordo com suas necessidades. O critério relevante não é, pois, o quantum da contribuição, mas sim a necessidade[19];

d) a cada qual segundo sua capacidade: trata da distribuição de cargas, sendo a contrapartida do princípio de necessidade na distribuição de vantagens[20];

e) a cada um segundo sua posição e condição: é princípio aristocrático de Justiça sustentado para justificar as distinções de classe social.[21] Diz respeito à desigualdade natural entre os seres humanos e a construção orgânica ou hierárquica da comunidade num certo número de classes, cada uma das quais desempenhando sua função particular dentro do todo.

Estes critérios não são expostos com a finalidade de discutir qual a formulação correta do Princípio de Justiça, mas para mostrar a insuficiência da pura reivindicação de igualdade, pois o conteúdo prático da exigência de Justiça depende de pressupostos externos ao Princípio da Igualdade, entre estes as categorias às quais se deve aplicar a regra de igualdade.

Conclusão

As necessidades humanas essenciais e a repartição dos bens fazem recordar a cultuada definição de justiça - conceder a cada um o que é seu – princípio aceito por diversos pensadores, particularmente filósofos do Direito. Vazia, entretanto, esta noção, pois o mote decisivo – a distribuição justa dos bens – queda-se ainda sem contra-golpe.

Despiciendo ignorar a verdade contida nesta asseveração, pois se nos dias atuais os bens são escassos em relação aos indivíduos a disputá-los, difícil é determinar o quinhão a ser considerado como seu pelos indivíduos em particular. Este enigma jaz atrelado à premissa de que aquela pretensão já se tenha decidido previamente, donde se infere ser esta decisão nativa de uma ordem acalcanhada no costume ou na ordem jurídica. Por esta ordem de raciocínio e pelo senso comum, será justificada através da fórmula ulpiniana a cada um o que é seu. No entanto, este aforismo sucumbe quando se impõe a necessidade de produzir um valor absoluto - neste caso, a Justiça absoluta - diferente dos valores, estes relativos, garantidos por uma ordem moral ou jurídica positiva.

O estudo da Justiça não se situa dentro das ambições da Teoria do Direito, considerada como conjunto sistemático de normas. A fala jurídica deve ser descritiva e não valorativa. Trabalha-se nesta seara a realidade fática, o dado, nada obstante, este dado não é o social, mas a norma posta pela autoridade competente. É preciso delimitar o Direito no concernente ao valor, sustentando não ser cátedra da Ciência Jurídica açambarcar esta esfera, mas isto não significa pretenda-se expungir toda e qualquer consideração ética do Direito. É necessário ao jurista manter-se neutro e distante - sob o ponto de vista subjetivo - do caso em concreto, não significando com isso manter-se estranho e incógnito ao estudo do justo e do injusto, mas tão somente consciente de que as terras nas quais desabrocham suas reflexões sobre a Justiça não deverão ser as mesmas nas quais nutrirá seu pensamento sobre o Direito.

Para se falar de Justiça no mundo atual e, em particular, no Brasil, é relevante decretar a necessidade de conscientização das diversas desigualdades alimentadas por uma estrutura de opressão, e o propósito de amainá-las. Ingênuo engano a tentativa de torná-las incógnitas. Dessa evidência, surge a tentativa de concretizar o Direito igualitário e justo, implícito nas letras da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza [...]", a partir de uma análise desigual, frente a desigualdade humana e/ou a desigualdade social, detectadas, respectivamente, a partir da natureza genética de cada um ou daquela decorrente das vicissitudes da vida. A partir dos dados objetivos, deve-se partir para a distribuição proporcional dos bens, pedra de toque da civilização contemporânea em razão do entrave assentado pelos privilegiados e detentores da legitimidade da partilha.

Os critérios antes mencionados aparecem como imprescindíveis na distribuição dos bens, embora não se possa negar a existência de uma oportuna cegueira diante da banalização da justiça social, que aflora como prestigiosa ferramenta do capitalismo, transmutando-se a mazela social em evento trivial, frente aos contra-sensos e humilhações embutidos no trato social. O paradoxo da modernidade mascara atitudes e costumes em atos de extrema piedade, que, por serem forjados, não possuem o condão de se transformarem em intervenções em nome da prosperidade dos menos favorecidos pela sorte. Os habitantes da cidade humanizaram os sentimentos, mas conservaram-se impérvios nas atitudes.
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[1] REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27. ed. ajustada ao novo Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 374.
[2] MICHAELIS: moderno dicionário da língua portuguesa. 1098765 ed. São Paulo: Melhoramentos, 1998, p. 274.
[3] KELSEN, Hans. O que é justiça?: a justiça, o direito e a política no espelho da ciência. Tradução Luís Carlos Borges. 3. ed. São Paulo: M. Fontes, 2001, p. 11.
[4] KELSEN, Hans. O problema da justiça. 3. ed. Introdução: Mário G. Losano. Tradução João Baptista Machado. São Paulo: M. Fontes, 1998a, p. 15-16.
[5] As decisões exaradas pelos Tribunais de Justiça brasileiros apelam fielmente ao critério da justiça comutativa quando se faz necessária intervenção judicial para estabelecer o equilíbrio dos contratos: BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (10. Câmara). Cível. Se o contrato faz lei entre as partes, o equilíbrio do início da contratação deve ser mantido como postulado de justiça comutativa que vincula os contratantes e o próprio Estado. O risco ou “alea” é inerente a todo contrato, sendo injusto e injurídico fazê-lo recair somente sobre uma das partes, no caso, justamente sobre a economicamente mais fraca. Apelação cível nº 1999.001.13905. Relator: Desembargador Jayro S. Ferreira. Rio de Janeiro, 14 de março de 2000. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. Disponível em: . Acesso em: 20 dez. 2005. (grifo nosso)
[6] Particularmente, nos dias de hoje, Hely Lopes Meirelles explica serem “o risco e a solidariedade social” os suportes da Teoria do Risco Administrativo, através da qual surge a obrigação de indenizar o dano do só ato lesivo e injusto causado à vítima pela Administração (pois não se exige qualquer falta do serviço público, nem culpa de seus agentes, bastando a lesão, sem o concurso do lesado.), porque: “por sua objetividade e partilha dos encargos, conduz à mais perfeita justiça distributiva, razão pela qual tem merecido o acolhimento dos Estados modernos, inclusive o Brasil, que a consagrou pela primeira vez no art. 194 da Constituição Federal de 1946. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 19. ed. atual. por Eurico de Andrade Azevedo, Délcio Balestro Aleixo e José Emmanuel Burle Filho. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 557. (grifo nosso)
[7] VON HAYEK, F. A. A miragem da justiça social. Visão (Unb), 1985. Capítulo 8: A busca da justiça, p. 120.
[8] BEAUCHAMP, Tom L.; CHILDRESS, James F. Principles of biomedical ethics. 4. ed. New York: Oxford University, 1994, p. 327.
[9] FRANKENA, William K. Ética. Tradução Leonidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mota. Rio de Janeiro: Zahar, 1981, p. 61-62.
[10] RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução Almiro Pisetta, Lenita M. R. Esteves. São Paulo: M. Fontes, 1997, p. 65.
[11] RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução Almiro Pisetta, Lenita M. R. Esteves. São Paulo: M. Fontes, 1997, p. 65.
[12] RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução Almiro Pisetta, Lenita M. R. Esteves. São Paulo: M. Fontes, 1997, p. 65.
[13] RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução Almiro Pisetta, Lenita M. R. Esteves. São Paulo: M. Fontes, 1997, p. 66-67.
[14] John Rawls sofreu críticas de diversos autores, entre estes, Robert Nozick e F. A. Hayek, e isso o fez modificar parcialmente sua teoria, expressada em sua obra Liberalismo político, na qual conclui pela validade das críticas sofridas. Robert Nozick, ao referir-se à obra A Theory of Justice, de John Rawls, declara-a como “[...] um trabalho vigoroso, profundo, sutil, amplo, sistemático sobre filosofia política e moral como nunca se viu igual desde as obras de John Stuart Mill.” Os filósofos políticos, continua o autor: “[...] têm agora ou de trabalhar com a teoria de John Rawls ou explicar por que não o fazem.” NOZICK, Robert. Anarquia, Estado e utopia. Tradução Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Zahar, 1991, p. 201-202. Após esta soberba apresentação, concede crítica às regras da justiça de John Rawls.
[15] ROSS, Alf. Direito e justiça. Tradução e notas de Edson Bini. São Paulo: EDIPRO, 2003, p. 314-315.
[16] ROSS, Alf. Direito e justiça. Tradução e notas de Edson Bini. São Paulo: EDIPRO, 2003, p. 315-316.
[17] A proposta do The Belmont Report, editado em 1978 pela Comissão Nacional para Proteção de Pessoas Humanas na pesquisa biomédica e comportamental, indica: a cada pessoa uma parte igual; a cada pessoa de acordo com a sua necessidade; a cada pessoa de acordo com o seu esforço individual; a cada pessoa de acordo com a sua contribuição à sociedade; a cada pessoa de acordo com o seu. A idéia é compensar as desvantagens eventuais rumo à igualdade.
[18] Esta fórmula de Justiça é invocada quando as mulheres exigem posições de igualdade com referência aos homens, por exemplo, uma remuneração igual a dos homens pelo mesmo trabalho. Segundo Alf Ross, isto expressa “precisamente a idéia de que o critério relevante que determina a classe que reclama tratamento igual é a quantidade de trabalho executado. Todas as pessoas que pertencem a esta classe, tanto as mulheres quanto os homens, têm assim o direito de reivindicar a mesma remuneração.” ROSS, Alf. Direito e justiça. Tradução e notas de Edson Bini. São Paulo: EDIPRO, 2003, p. 316.
[19] O enfermo ou fraco deve receber de acordo com suas necessidades, sem se levar em conta o fato de que por essa mesma razão dá uma pequena contribuição ou nenhuma.
[20] Exemplo típico é a determinação do imposto de renda por meio de regras referentes a rendas mínimas isentas de imposto, escalas progressivas, deduções por filhos, entre outros.
[21] A referência a este princípio justifica uma distinção entre empregadores e empregados, brancos e negros, nobres e camponeses, entre outros.